Em 9 de agosto de 1997, morreu o sociólogo Herbert José de Sousa. Betinho nasceu em 1935, na cidade mineira de Bocaiúva. Como seus irmãos Henfil e Chico Mário, herdou a hemofilia e contraiu o vírus HIV em transfusão de sangue. Ele criou a Ação da Cidadania Contra Fome e a Miséria, liderando campanha nacional.

Na foto, o retrato de Betinho
Na foto, o retrato de Betinho

O sociólogo Herbert de Souza completaria 70 anos no dia 3 de novembro. Ele contava que, por culpa de um tio que entendia de cartório, mas não entendia de alemão – e o registrou como Hebert, assim mesmo, sem a letra “r”, –, tinha ficado errado desde o nascimento. Herbert de Souza também dizia que o governo não é fundamental. Não se filiou a nenhum partido e tinha medo de que o Partido dos Trabalhadores seguisse um rumo totalitário. Certa vez, convocou os presidentes das maiores estatais brasileiras para uma reunião e se admirou quando todos apareceram. Betinho era assim: tinha opinião, mas, acima de tudo, tinha ação.

Quem conta o caso é o presidente do Comitê de Entidades no Combate à Fome e pela Vida (Coep), André Spitz. “Foi um ato de ousadia. Convidamos vários presidentes, e não é que eles vieram?”, lembra ele, ressaltando que o arrojo de propor a reunião foi o primeiro passo para a criação do Coep. Antes disso, Betinho já tinha, ao lado do companheiro Carlos Afonso, hoje diretor de Planejamento e Estratégias da Rits, fundado o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), em 1981.

Ao longo da vida, Betinho foi obrigado a conviver com limitações impostas pela saúde frágil. Hoje, 70 anos depois de seu nascimento e oito anos após sua morte, brasileiros e brasileiras se lembram do homem que os ajudou a apreender, recém-aportados no seu processo de redemocratização, o significado da palavra cidadania. “Ele faz uma falta danada. Era dessas pessoas, os Gandhis da vida, que se apresentam de tempos em tempos e mudam os rumos de uma comunidade, de uma nação, ou mesmo da humanidade”, diz Carlos Afonso.

Betinho não conseguia dormir com um sol daqueles: milhares de crianças trabalhando em condições de escravidão, trabalhadores sobrevivendo com suas famílias num quadro de miséria e de fome, a exploração da mulher, a discriminação do negro. Dizia que cidadania é a prática de quem está ajudando a construir os valores democráticos. Baseado nesses princípios, sentenciou certa vez: “Entre o presidente e o cidadão, fico com o cidadão”. Seu legado cidadão é, todavia, muito maior do que a mera noção de cidadania.

O instituto das bases

Carlos Afonso conta que, se não fosse o projeto do Ibase, provavelmente teria ficado com a família no Canadá, onde estava exilado. “Para Betinho, a coisa foi bem mais objetiva: ele era o mote do hino da anistia [a música “O Bêbado e a Equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc, que falava no “Brasil que sonha com a volta do irmão do Henfil”]. Tinha ido para o México em 1978, para ser professor do doutorado em Ciência Política da Universidad Nacional Autónoma de México (Unam). Decidimos, eu no Canadá e ele no México, pensar em um projeto político de retorno ao Brasil que, se viável, significaria a volta de minha família também. E assim nasceu a idéia do que veio a ser chamado de Ibase”, diz.

A experiência internacional, explica Carlos Afonso, proporcionou a convivência com uma democracia parlamentar representativa consolidada em um país desenvolvido como o Canadá. E isso foi crucial para a criação do Ibase. “Como latino-americanos, até então, nunca havíamos tido oportunidade semelhante. É uma democracia fundada no voto distrital, de modo que o contato entre o parlamentar e sua comunidade é muito mais estreito. Impossível não ser influenciado por uma sociedade e uma política com participação intensa da sociedade civil organizada, que nos parecia, e me parece até hoje, nem digo de Primeiro Mundo, mas quase de outro planeta”, analisa.

Para o diretor-geral do instituto, Cândido Grzybowski, o Ibase representou uma mudança de estratégia: de conquistar a sociedade em vez do Estado. “Ele não apostou tanto nos partidos. Ele os achava necessários, mas acreditava que não eram a prioridade”, afirma.

Betinho era sintonizado na conjuntura e tinha o olhar arguto para as questões que envolviam as desventuras humanas. Segundo Cândido, esse é o principal motivo de o Ibase não ser uma organização temática. “Ou a temática é tão grande que engloba muita coisa. Mas nossos temas passam sempre pela opção de radicalizar a democracia e de desenvolver uma cultura democrática”. O diretor explica ainda que depois da morte de Betinho houve pressões para que a entidade assumisse uma postura monotemática. “Isso seria a morte do Ibase”, acredita.

Maria Nakano, coordenadora de Comunicação do instituto e viúva de Betinho, diz que qualquer questão em que se envolvia era a mais importante para ele naquele momento. “O Betinho vivia o presente e o futuro. Ele não estava preocupado com o passado. Dizia que já existiam historiadores para se preocupar com o passado”, lembra Maria.

O caráter amplo do trabalho do Ibase mostra o jeito como Betinho via o Brasil. A característica de eleger temas de trabalho de acordo com a conjuntura – que virou marca da entidade – serão mantidas, segundo Cândido. Para ele, o ciclo de redemocratização que tomou conta do Brasil teve sua expressão máxima nos governos de Fernando Henrique e Lula. O esgotamento do modo atual de fazer democracia leva à necessidade de mudar o eixo de atuação. “Temos que estar voltados agora mais para a cidadania e menos para os partidos políticos. Precisamos mais de voz do que de votos. Hoje já estamos pensando na ‘refundação’ do Ibase”, diz. Mas ressalta que o mote continua sendo a radicalização da democracia, que é feita sempre de baixo para cima.

Para comemorar os 70 anos do sociólogo, o Ibase vem organizando o ciclo Conversas com Betinho, que compreende seminários, visitas a escolas, lançamento do site www.conversascombetinho.org.br e do livro “Um abraço, Betinho”, que é a primeira obra realizada a partir do seu arquivo pessoal. Os documentos foram doados pelo Ibase e por Maria Nakano ao CPDOC da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e poderão ser consultados pelo público a partir do ano que vem. “É um acervo muito rico. Tem manifestos, cartas, cartazes. O arquivo acompanha a trajetória desse personagem”, explica a pesquisadora da FGV e diretora do Ibase Dulce Pandolfi, que ao lado de Luciana Heymann organizou a publicação.

O pecado original

Para Betinho, a miséria tinha origem certa: a concentração da terra. Foi essa uma das suas principais frentes de luta. O sociólogo desempenhou papel decisivo na Campanha Nacional pela Reforma Agrária (CNRA). Em 1990, organizou uma manifestação, no Rio de Janeiro, que reuniu 200 mil pessoas e chamou a atenção da mídia para a questão.

O diretor-geral do Ibase acredita que a contribuição de Betinho nessa temática foi fundamental. “A reforma agrária ainda não foi feita. Mas agora temos mais consciência de problemas que antes eram tabus”, diz. A elaboração da carta da CNRA foi coordenada pelo Ibase, com a liderança de Betinho. Da mesma forma como a CNRA cresceu, incorporando várias entidades em todo o país, perdeu fôlego no fim da década de 1980.

“Nada foi feito até hoje, mas é uma luta que temos de seguir travando. Os movimentos sociais devem continuar lutando para que a questão da terra seja finalmente colocada na ordem do dia”, avalia Maria Nakano, que critica a forma como os grandes proprietários de terra burlam os entraves criados pelo governo.

Responsabilidade de quê?

Quando Betinho, com os companheiros Luiz Pinguelli Rosa e André Spitz, apresentou o mapa da fome aos presidentes das estatais brasileiras e perguntou o que poderiam fazer em relação àquela situação, a reação foi de perplexidade. “Mas saímos de lá com a proposta da criação do Comitê de Entidades no Combate à Fome e pela Vida”, lembra André, hoje à frente da organização.

Maria Nakano acha que o Brasil avançou bastante nesse sentido, pois muitas empresas já apresentam anualmente o seu balanço. Mas Betinho achava que era uma questão de responsabilidade da empresa, e por isso não deveria ser obrigatório. “Hoje ainda não alcançamos a situação ideal, mas a responsabilidade social já uma realidade”, diz.

Depois disso, o Coep cresceu e incorporou entidades de outros setores, além das estatais. O objetivo principal, no entanto, foi mantido. “Criamos ferramentas de articulação e comunicação e temos uma rede no Brasil com mais de 950 organizações associadas. A meta inicial, que era o combate a fome, foi mantida e ampliada com o aumento da responsabilidade social das empresas”, diz André Spitz.

De 1993, quando a Coep foi fundada, até hoje, muita coisa mudou. André conta que a reação de surpresa dos presidentes deu lugar a uma prática mais institucionalizada e profissional. “Temos um acúmulo de conhecimento sobre o que uma empresa deve e pode fazer do ponto de vista social. Procuramos ajudar as instituições a desenvolver habilidades que facilitem essa ação”.

“Betinho foi fundamental como grande animador dessa iniciativa. Ele ainda teve a visão de que as empresas estariam todas conectadas via Internet. Via utopias e transformava em realidade”, exalta André. Para ele, a capacidade do sociólogo de olhar adiante e fazer valer a esperança contribuiu para muitos atos de ousadia ao longo da vida. “Hoje, se há tantas redes batalhando pela questão da segurança alimentar, devemos muito à grande capacidade de diálogo de Betinho. Ele conseguia fazer pessoas muito diferentes sentarem juntas”.

Pela ética, contra a fome

O estado de perplexidade que tomou conta da população após as denúncias de corrupção no governo poderia não ter acontecido. Para Cândido Grzybowski, Betinho teria antecipado a crise, teria reagido antes. “Ele era um líder cidadão, preocupado com a defesa do bem comum.Nunca disputou um cargo. Precisamos de muitos Betinhos…”.

Carlos Afonso diz que o sociólogo tinha as questões éticas e morais profundamente internalizadas. O que refletia, segundo ele, nas menores coisas do cotidiano, não apenas nas questões políticas.

Em 1992, Betinho foi uma das principais lideranças do Movimento pela Ética na Política, que culminou no impeachment do presidente Fernando Collor de Mello. O Brasil que não estava acostumado ao funcionamento da democracia depois de anos de regime autoritário, foi às ruas exercer sua cidadania. A Campanha Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida surgiu nesse contexto, para aproveitar a energia mobilizadora da ocasião. “Todos os segmentos da sociedade estavam unidos pela ética na política. Alcançado o impeachment de Collor, vários setores não queriam deixar que toda aquela mobilização acabasse”, lembra Maurício Andrade, coordenador-geral da Ação da Cidadania, que ficou conhecida também como a Campanha contra a Fome.

“Betinho nunca imaginou que pudesse ocorrer aquela onda de solidariedade”, conta Maurício. O país se mobilizou para ajudar a “campanha do Betinho”, que rebatia com vigor as críticas de estar praticando assistencialismo. Ele achava que “propor o estrutural sem atuar no emergencial era praticar o cinismo de curto prazo em nome da filantropia de longo prazo” (“Um abraço, Betinho” – pg. 181). Além das campanhas para recolher doações, o objetivo da Ação da Cidadania é denunciar a parcela da população que vive na miséria e a necessidade de políticas públicas. “Como todo esse procedimento é demorado, há a necessidade de um atendimento de urgência”, explica Maurício.

No 13º Natal sem Fome, Maurício garante que a entidade ainda mantém as suas características principais. Mas a conjuntura, certamente, é outra. “Houve mudanças palpáveis. Há 13 anos, a política mais marcante de combate à fome era a de distribuição de leite. Hoje, o Bolsa Família alcança 7 milhões de pessoas e é muito mais digno do que a mera distribuição de leite”, diz, admitindo que alguns reparos ainda são necessários no programa.

A Ação da Cidadania une na prática duas vertentes essenciais do legado de Betinho. “O Natal sem Fome teve um aumento considerável da participação de empresas nas campanhas. Para Betinho a responsabilidade social era muito importante”, afirma Andrade. E conclui: “O exemplo mais concreto da sua presença é que, depois de oito anos de ausência, as diferentes bandeiras e lutas estão fortalecidas”, observa, lembrando as homenagens a Betinho que os comitês fazem em todo o Brasil”.

Mais uma frente de luta

A outra frente de luta aberta por Betinho surgiu com a expansão do HIV/aids. Os irmãos – o cartunista Henfil e o músico Chico Mário –, hemofílicos como ele, foram contaminados primeiro. Quando descobriu, em 1986, que também era soropositivo, conseqüência de uma das tantas transfusões de sangue a que se submetera, Betinho não poderia ter feio outra coisa: assumiu publicamente a doença e começou mais uma batalha. “Betinho nunca encarou a doença como questão central na sua vida. Tanto a aids quanto a hemofilia. Isso tem a ver com a sua forma de encarar a vida”, diz Maria. A companheira do sociólogo conta ainda que todas as decisões relacionadas à doença dependiam dele exclusivamente. “Ele foi firme até o fim. Mas quando a saúde já estava muito debilitada, tomou a decisão que cabia naquele instante. Por sorte, teve consciência de todos esses momentos”.

O controle mais rigoroso dos bancos de sangue e o fim da sua comercialização tiveram influência direta de Betinho. O coordenador-geral da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), Veriano Terto, explica que a entidade nasceu dentro do Ibase, a partir de um núcleo multidisciplinar que discutia a emergência da doença no país. “A Abia nasce em 1986, com o objetivo de mobilizar a sociedade para criar uma rede de solidariedade para responder à epidemia de aids no Brasil”, explica Veriano.

Na ocasião, o tema estava envolvido por um discurso de medo. “A aids não tem cura e mata”. Diziam as campanhas publicitárias do governo. Betinho reagiu e cobrou junto à Abia a responsabilidade do Estado no combate à epidemia. “Esse ato de coragem, de ousadia, foi fundamental para criar, mais tarde, o programa de apoio às pessoas com aids. A Abia se mantém fiel a seus princípios. Continuamos acreditando nos valores da democracia para a promoção de saúde pública, da solidariedade e dos direitos humanos”, avalia o coordenador.

Apesar dos avanços, Veriano tem certeza de que Betinho ainda estaria denunciando o que ainda não foi atingido. “A taxa de mortalidade de pacientes com Aids permanece alta, assim como a dificuldade de acesso a exames essenciais e a grande dependência brasileira da indústria farmacêutica internacional”, pondera.

Diante do legado cidadão que ficou, os brasileiros teimam em perguntar o que faria Betinho se estivesse aqui. “Nós tendemos a perguntar isso para responder o que desejaríamos que ele fizesse. Mas isso depende de cada um”, responde Carlos Afonso.

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Fonte de informação: Fórum Nacional de Entidades de Direitos Humanos