Não existimos fora de uma linguagem
Sonia Regina Lourenço *
(Reproduzido com a autorização da autora)
Como disse certa vez Pierre Bourdieu, “existir é diferir”, fazer distinções, classificar os outros. Toda pessoa está condenada à linguagem. A realidade, ou o real do mundo ou o mundo real, é linguagem simbólica. Não há nada fora do mundo que não resida na linguagem simbólica, mesmo que opaca, cheia de rupturas, amarras e tensões. Há muitos mundos ainda desconhecidos. Colombo, ao chegar na América, acreditou que descobrira a América. Mas, dedicado a conhecer e nomear plantas e animais, não descobriu (compreendeu) os americanos (ameríndios).
Colombo não procurava verdades, mas confirmações a suas verdades conhecidas de antemão. Tomava seus desejos por realidade, sua convicção e ignorância misturavam-se, convicções anteriores à experiência. Colombo tinha o hábito de ver as coisas de acordo com sua conveniência. Isso soa tão contemporâneo! Em que lugar a sociedade guarda o racismo, o etnocentrismo, o machismo e a homofobia? Em que medida há um pouco de Colombo em cada um?
Os povos indígenas ainda são idealizados por boa parte da população brasileira e mundial como povos “selvagens, primitivos, preguiçosos, depauperados e sem cultura”, o negativo do espelho civilizatório ocidental. O que teríamos da “nossa cultura” para ensinar aos índios? Quem são os índios? Quem somos nós para decidirmos o que é melhor para o outro? O etnocentrismo é uma prática universal que consiste em repudiar as formas e expressões culturais estranhas, estrangeiras em suas dimensões morais, religiosas, econômicas, sociais e estéticas. Mas a constatação não implica na aceitação. Tal prática é a recusa de admitir a diversidade cultural, preferindo-se lançar para fora da lógica cultural e, dentro da natureza, tudo o que não se conforma com aquilo que se pensa que é a norma sob a qual se vive.
A noção de humanidade, de normalidade e de civilidade cessa nas fronteiras da tribo, do grupo linguístico, da aldeia, do bairro, da cidade e do País. Lévi-Strauss nos ensina ainda que o discurso da igualdade entre todas as pessoas nega a diferença cultural, porque o ser humano não realiza sua natureza numa humanidade abstrata, mas em cosmologias, relações sociais, socialidades e identidades. A longa experiência antropológica e histórica do homem mostra e confirma que não existimos fora da linguagem. Somos feitos da carne e do sangue, mas, principalmente, do discurso. Estamos em uma matriz de relações que estão, a todo o momento, refazendo-se e refazendo outras. Como negar viver em sociedade sem a diferença? Porque chamamos o outro de diferente? Existe algo que nos faz melhor, superiores ou normais em relação ao outro?
As histórias das nações modernas do Ocidente não foram suficientes para nos ensinar algo sobre a vida em sociedade. A sombra do mal, metáfora usada para falar ou lembrar de sistemas totalitários que fizeram história – processos de colonização, dominação e extermínio de povos do mundo pelos impérios europeus dos séculos 15 ao 21 – percorre nosso cotidiano. O império romano, o fascismo e o nazismo, as ditaduras na América Latina, as guerras nos Bálcãs, a invasão do Afeganistão e do Iraque, a violência contra gays, lésbicas, travestis e intersex, afrodescendentes, mulheres, moradores de rua e crianças são retratos de sociedades que se recusam a olhar para si e aceitar as diferenças.
O ódio de classe, o racismo, a homofobia (ódio e abjeção contra as relações homoafetivas), as várias modalidades de violência contra as mulheres (assédio sexual e moral, estupro, exclusão na esfera pública da política e do trabalho), o preconceito contra povos indígenas e suas terras, são sinais de que as coisas não vão bem. Em que medida vivemos em um mundo democrático que construiu, legitimou nas suas Constituições soberanas, a defesa dos direitos humanos, o direito à diferença e a igualdade de condições?
Homi Bhabha ensina que é preciso pensar a ideia de cultura como um problema da enunciação da diferença. O problema, de acordo com Bhabha, reside no discurso autoritário cuja enunciação fala em nome de e no lugar do outro, produzindo classificações e negações. A diferença cultural no campo das palavras e dos discursos recoloca velhas ideias binárias como passado e presente, tradição e modernidade, o bem e o mal, o normal e o patológico, primitivos e civilizados.
A repetição do discurso mítico, autoritário e conservador ungido pelas sensações de medo, abjeção e pânico em relação a pessoas com orientação sexual gay, lésbica ou intersex ou em relação às populações indígenas ou afrodescendentes, fornecem condições para, em nome da tradição e do racismo, de um passado infiel à memória histórica, a reprodução da exclusão social, da violência e do preconceito.
Basear-se em ideias pré-concebidas fundadas em um círculo de práticas e significados de um mundo hermético voltado para o umbigo e fechado ao outro quando se quer falar, classificar ou julgar esse outro é recusar a multiplicidade do ser humano. Quem detém o poder de falar e julgar o outro? Quem deve falar pelo outro? A questão do outro está mal colocada na tradição ocidental, porque se busca, sempre, um outro que é sempre o outro do mesmo, o outro do próprio sujeito e não um outro sujeito a ele, irredutível e de dignidade equivalente. Isto significa que ainda não existiu realmente a aceitação e o reconhecimento do outro em suas multiplicidades de existência. Porque não optarmos pela diferença à uniformidade, a liberdade ao poder, o devir à tradição, o fluxo e o múltiplo às unidades e aos blocos.
A recusa da diversidade e a negação das identidades é a expressão da incapacidade de conhecimento do outro. Os “subalternos”, ex-escravos, indesejados, clandestinos, abjetos, entram em cena se apoderando da modernidade para criar novas formas de estar no mundo, novas formas de pensamento e de enunciação. Todos os preconceitos citados ainda são problemas de Estado, da lei, dos direitos humanos, problemas que as políticas públicas das instâncias federal, estadual e municipal devem levar a sério tanto no reconhecimento quanto na criação de leis, instrumentos e ações para o exercício da cidadania dos direitos sociais que alcançam a diversidade cultural no e do Brasil.
*Sonia Regina Lourenço é antropóloga, doutoranda em antropologia social pela UFSC e coordenadora do Museu Nacional de Imigração e Colonização de Joinville.
Deixe uma resposta