Uma ponte sustenada num fundo branco.

Por Ana Nunes

A epidemia do vírus zika e sua cada vez mais provável relação causal com a microcefalia recolocou em discussão nacional a questão do aborto. Embora se trate de tema urgente, a sociedade brasileira “não aceita sequer discutir o aborto, a não ser quando o assunto é evitar um filho com deficiência”, como bem observou Meire Cavalcante[1].  O debate sobre o zika tem me incomodado, como mãe de pessoa com deficiência e como feminista.  Como mãe de autista, ressinto-me em ver reproduzidos os velhos estereótipos que reduzem a deficiência a uma tragédia. Também me incomoda a redução da discussão a como prevenir ou erradicar a microcefalia, sem que se fale de planos para incluir e possibilitar uma vida plena às crianças que venham a nascer com danos neurológicos em virtude da epidemia de zika, e muito menos em como apoiar as famílias. Ou melhor dizer apoiar as mães, para ser mais precisa, já que se iniciou outra epidemia: a dos pais que abandonam os filhos com má-formação neurológica.[2]  Como feminista, me incomoda que o debate sobre aborto se dê não por reconhecer as mulheres como sujeitos capazes de fazer as próprias escolhas morais, mas sim por medo da deficiência.

A posição feminista sobre aborto é conhecida:  a favor da descriminalização do aborto, do direito de escolha e da autonomia reprodutiva da mulher. As feministas têm presente que a questão do aborto é também uma questão de saúde pública, que custa a muitas mulheres sua integridade física e, por vezes, a vida. O feminismo tampouco tem ignorado que esse debate não é apenas uma questão de gênero, mas também de raça e classe: para a mulher branca e economicamente privilegiada, o aborto seguro nunca deixou de ser acessível.

Meu objetivo neste artigo é tentar articular a posição feminista de uma forma não-capacitista. Análises importantes sobre a privatização dos efeitos da epidemia, por meio de recomendações que enfatizam o controle sobre os corpos femininos e deslocam do Estado para as mulheres a responsabilidade pelo controle da epidemia e de seus efeitos, já foram feitas por Daniela Lima [3] e Lucio Carvalho [4]. Recomendo também a leitura dos artigos de Eliane Brum [5], Débora Diniz [6] e Maria Antônia Goulart [7], para um panorama das diversas vozes envolvidas na discussão.  E advirto desde já: falo aqui como indivíduo, como mãe e como ativista, não na condição de porta-voz de nenhum grupo. Tenho, contudo, a esperança de ajudar a organizar algumas perplexidades, de tentar construir algumas pontes entre posições que parecem conflitantes.

Com o avanço dos testes pré-natais e da manipulação genética, a possibilidade de evitar o nascimento de pessoas com deficiência – sobretudo com certos tipos de deficiência diagnosticáveis in utero – tem se tornado uma realidade.  Agora, com o zika, a verificação de contaminação pelo vírus configuraria uma espécie, embora não conclusiva, de teste pré-natal, dada a possível relação do vírus com o nascimento de bebês com microcefalia.

Nós, ativistas dos direitos das pessoas com deficiência, vemos com consternação a realização destes abortos. Nós valorizamos a diferença. Não queremos viver em um mundo onde as pessoas com deficiência sejam eliminadas. Cada vida com deficiência importa e deve ter seu valor reafirmado. Causa-nos tristeza constatar que, do ponto de vista simbólico e cultural, cada aborto de um feto com deficiência contribui para reforçar a visão negativa da deficiência, para reafirmar o conceito de que a deficiência seria um destino pior que a morte.

Uma das reações possíveis para um hipotético defensor dos direitos das pessoas com deficiência seria posicionar-se contra a descriminalização do aborto, por perceber sua proibição legal como única maneira de evitar a eliminação de fetos com deficiência. Ora, se o que desejamos é afirmar a dignidade humana das pessoas com deficiência, o valor intrínseco às suas vidas, essa afirmação só é alcançada quando se deixa de abortar um feto com deficiência exatamente por acreditar nessa dignidade intrínseca – e não porque o aborto é proibido por lei. Não abortar porque é crime não afirma a dignidade do feto com deficiência – afirma, somente, o poder dissuasivo do Direito Penal. Onde não há escolha, não há afirmação moral.

Outro corolário de apoiar a posição “pró-vida” é que, para proibir o aborto, é necessário concordar com a premissa que o embrião é um sujeito de direitos desde o momento da concepção. Desta forma, teríamos também de rejeitar pesquisas científicas que utilizam células-tronco embrionárias – pesquisas importantíssimas para numerosas pessoas com deficiência.

Em qualquer discussão sobre aborto, é necessário considerar que há dois “bens jurídicos” em conflito: o direito da mãe à autonomia reprodutiva e a eventual proteção devida ao feto. Aqui ingressamos no terreno pantanoso, tanto do ponto de vista jurídico quanto científico, da delimitação do momento em que o feto se constituiria em sujeito de direitos. Outra pergunta necessária: qual a estatura dos eventuais direitos do feto quando confrontados com os direitos da mãe? Para tornar o assunto ainda mais complexo, uma conhecida posição de ativistas dos direitos das pessoas com deficiência, sobretudo no exterior, é de que o aborto de um feto com deficiência afetaria não apenas a este feto, mas a todas as pessoas com deficiência, na medida em que reforçaria a visão capacitista de que uma vida com limitações não vale a pena ser vivida. Haveria, portanto, um terceiro “bem jurídico” a considerar: o direito das pessoas com deficiência a não serem atingidas por práticas preconceituosas que afetem sua dignidade.

Uma primeira tentativa de conciliação da posição feminista com a posição dos defensores dos direitos das pessoas com deficiência seria descriminalizar o aborto somente no primeiro trimestre da gravidez.  No primeiro trimestre, ainda não é possível ultimar os testes que levam à detecção de boa parte das deficiências. No primeiro trimestre, o feto ainda não está neurologicamente formado, a ponto de sentir dor. No primeiro trimestre é consideravelmente mais difícil argumentar, do ponto de vista científico, que o feto seja senciente. Mesmo entre os defensores da legalização, o recorte no primeiro trimestre é a posição mais consensual; não por acaso, projeto de lei protocolado pelo Deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) prevê a descriminalização do aborto até a 12a semana de gestação.[8]

Contudo, este argumento cai por terra no caso do zika: uma contaminação por zika no primeiro trimestre já serviria como “indicativo” da microcefalia. E é precisamente esta a discussão atual, no Brasil: a liberação do aborto nos casos em que esteja presente este indicativo.

A legislação inglesa, por exemplo, traça outra linha delimitadora: o aborto é permitido até a 24ª semana – momento em que a sobrevivência do feto seria viável fora do útero, com a devida intervenção médica. Mas a mesma legislação inglesa traz exceção de um capacitismo gritante, duramente combatida por ativistas dos direitos das pessoas com deficiência: o aborto no terceiro trimestre é permitido, excepcionalmente, nos casos de feto com deficiência. O ativista inglês Tom Shakespeare, em “Disability Rights and Wrongs Revisited”, conta um caso espantoso, em que dita exceção foi utilizada para permitir o aborto, no terceiro trimestre, de feto com fissura palatina!

A microcefalia, coincidentemente, só pode ser detectada com clareza em exame de ultrassonografia realizado a partir da 24ª semana[9] – fim do segundo trimestre. Antes disso, a contaminação por zika é um indicativo, mas ainda com pouca clareza científica – como Chris Barker, patologista da Universidade da Califórnia, declarou ao The Guardian, “adoraria saber quantas, dentre as grávidas que pegam o zika, de fato chegam a apresentar fetos com microcefalia. Mas ainda não temos estes números.”[10] Mesmo quando o ultrassom detecta a microcefalia, não se pode evidenciar com certeza o grau de comprometimento do feto:  muitos fetos com alterações morfológicas aparentemente graves não apresentam maior comprometimento, enquanto alterações morfológicas menores podem causar comprometimento mais severo.[11] Estamos falando, portanto, de uma decisão tomada em meio a pânico, retórica exacerbada e militarizada de combate ao mosquito, e muito pouca clareza científica.  É necessário deslocar o debate do campo científico, onde ainda imperam incertezas e hipóteses, para o campo político, ético e de direitos humanos.

É necessário para o debate ético distinguir entre abortar porque não se deseja uma gravidez e abortar porque não se deseja uma gravidez de um feto com determinadas características. Nós, feministas, nos indignamos profundamente com o aborto seletivo de meninas na China e na Índia; que não nos indignemos na mesma medida com o aborto de meninas com deficiência só comprova o quanto ainda falta ao feminismo incorporar a dimensão anticapacitista.

Imaginemos que fosse possível detectar, via teste genético, outra característica que alguns pais considerassem indesejável, como, por exemplo, a homossexualidade; admitiríamos sem qualquer discussão estes abortos, com base na máxima “meu corpo, minhas regras”? Se abortar porque não se deseja uma gravidez é um exercício legítimo da autonomia reprodutiva da mulher, abortar porque não se deseja um feto com determinadas características tem de ser problematizado.

Embora seja contra o aborto seletivo de meninas na China e na Índia, o feminismo não faz campanha pela proibição legal do aborto nestes países. A solução é desconstruir o machismo, cultural e estrutural, que faz com que estes abortos ocorram. Desconstruir a visão – e modificar a realidade – que faz com que uma filha mulher naquelas sociedades seja um custo, uma ocorrência indesejável.  Em minha opinião, o mesmo se aplica ao aborto de fetos com deficiência: criminalizar não é a solução. Temos de construir uma sociedade menos capacitista. Uma sociedade onde um filho com deficiência seja valorizado e enxergado como uma pessoa, não como um custo, uma ocorrência indesejável.

 

 – Deficiência como tragédia

Ao se descobrir grávida de um feto com deficiência, a mulher tem de lidar com o luto da perda do filho idealizado, e com a certeza de que atravessará uma experiência de maternidade muito mais desafiadora, tanto pela condição de seu filho (que impõe terapias, tratamentos, apoios escolares), como pelo preconceito e pelas barreiras impostas pela sociedade. Mais que isso, a futura mãe se depara com o estereótipo cultural de que a deficiência é uma desgraça, uma tragédia, um destino pior que a morte, uma vida com limitações tais que não vale a pena ser vivida. Exemplo gritante deste estereótipo cultural é a recente fala do biólogo Richard Dawkins, que aconselhou a uma mulher em seu twitter: “aborte e tente de novo. Seria imoral trazer um bebê com Síndrome de Down ao mundo se você tem a escolha de não fazê-lo”. E ainda explicou: “se sua moralidade é baseada, como a minha, no desejo de aumentar a soma de felicidade e diminuir o sofrimento, a decisão de deliberadamente dar à luz uma criança com Síndrome de Down, quando você tem a possibilidade de abortar no início da gravidez, pode realmente ser imoral do ponto de vista do bem estar da própria criança.”[12]

A visão utilitarista de Dawkins, segundo a qual se deveria abortar um feto com deficiência porque seu nascimento aumentaria o sofrimento presente no mundo, demonstra uma profunda ignorância da realidade da vida das pessoas afetadas pela deficiência. É verdade que lutamos, que sofremos com as limitações impostas pela deficiência – mas sofremos ainda mais com as limitações impostas pela sociedade. Apesar disso, somos felizes. Sabemos celebrar cada pequena conquista, cada pequena alegria. Temos orgulho de ser quem somos. Reafirmamos a cada dia o valor da diferença e da diversidade, e a dignidade de todos os seres humanos. Se Dawkins não considera isso capaz de aumentar a soma de felicidade no mundo, permitam-me divergir.

Ademais, é profundamente perigosa a premissa que, segundo Dawkins,  autoriza o aborto:  esta pessoa sofrerá e fará sofrer. Honestamente, se aplicássemos este raciocínio a todos, sobraria algum humano no mundo? Mesmo que consideremos que Dawkins fale de sofrer e fazer sofrer “mais do que a média” – a qual semideus caberia a tarefa de arbitrar essa média, eu só posso me perguntar -, o corolário deste raciocínio seria eliminar todos os que sofrem ou fazem sofrer mais que a média.  Os primeiros que me ocorrem são banqueiros de Wall Street, criadores dos sub-prime que detonaram a crise de 2008; maltratadores seriais de mulheres; políticos que desviam verba da merenda escolar. Aliás, preconceituosos em geral, vocês têm ideia de quanto sofrimento causam?[13]

Consequência lógica do argumento utilitarista de “redução do sofrimento e maximização da felicidade” seria termos de abortar todas as gravidezes do mundo, dado o enorme potencial do ser humano para sofrer e fazer os outros sofrerem.  Aliás, deveríamos abortar com mais convicção os fetos sem deficiência, que terão muito mais oportunidades, em nossa sociedade, para cometer maldades e atrocidades.

Apesar do preconceito que transborda das declarações de Dawkins, a visão que o biólogo esposa é poderosa, porque cristalizada em nossa consciência coletiva: “melhor morrer que viver assim”; “se isso acontece comigo, eu me mato”. Estes estereótipos ressoam na mente da mãe recém-diagnosticada, que tem de tomar uma decisão em meio ao luto, e sem dispor de informação satisfatória. Saberá esta futura mãe desconstruir estereótipos tão poderosos, em um momento de tamanha fragilidade? E como fazer uma escolha informada, estando sob a influência destes clichês? Na verdade, o ethos cultural apresenta pouca escolha à mulher cujo feto é diagnosticado com deficiência: o único caminho “racional”, claro, é abortar. [14] A margem de escolha da mulher – que é o que nós, feministas, queremos defender – é profundamente reduzida pelo capacitismo da sociedade. Se queremos ser realmente pró-escolha, temos que incorporar ao discurso feminista a desconstrução dos estereótipos que cercam a deficiência.

Por isso celebro iniciativas de grupos de pais em visitar futuras mães recém-diagnosticadas, a fim de conversar e possibilitá-las fazer uma escolha realmente informada. Cartilhas como a linda “Três Vivas para o Bebê”, editada pelo Movimento Down, deveriam estar disponíveis em todos os centros de ultrassonografia e consultórios obstétricos do Brasil.

 

– Base material. Conceito amplo de direitos reprodutivos. Disabled lives matter.

Mas não são apenas os estereótipos culturais que tiram a escolha da mulher que se descobre grávida de um feto com deficiência. A base material afeta, e muito, essa escolha.  A falta de apoio da sociedade e do Estado. A falta de recursos. Qual a margem REAL de escolha para a mulher que percebe que terá de enfrentar esta maternidade muito mais desafiante sem escola pública inclusiva, sem creche pública, sem apoios financeiros? Da mulher que sabe que muitas vezes lhe será negado, por causa do preconceito, o cuidado usualmente prestado por familiares? Da mulher que não tem dinheiro para pagar custosas terapias? Qual a verdadeira liberdade da mulher para escolher ter um filho com deficiência, em um contexto onde abortar parece a única saída?

Uma posição realmente “pró-escolha” tem que garantir que a mulher tenha opções. Devemos lutar para que a mulher que tome a difícil decisão de abortar possa fazê-lo em segurança e sem ser criminalizada, mas também para que essa mulher tenha a possibilidade de escolher ter o filho com deficiência, sem que o preço a pagar por essa opção seja insuportável.  Para isso, precisamos de mais apoios do Estado e da comunidade às famílias com deficiência. Se, como sociedade e como feministas, queremos afirmar a autonomia das mulheres para fazer escolhas, é imperioso lembrar que só há escolha onde há opções. Opções reais.

A ativista Alicia Garza, uma das criadoras do movimento “Black Lives Matter”, declarou recentemente que direitos reprodutivos não se limitam ao acesso a contraceptivos e a aborto descriminalizado. Segundo Garza,  exercitar plenamente seus direitos reprodutivos é ter também a possibilidade de criar seus filhos, de saber que eles vão crescer seguros. [15]

Não esqueçamos que no Brasil o recorte de classe o mais das vezes coincide com o de raça.  É sempre muito mais fácil para a mulher branca de classe média optar por ter um filho que veio de forma inesperada, com ou sem deficiência. Ou optar por abortar. A mulher de classe média tem mais acesso a contraceptivos, mais autonomia para exigir o uso de preservativo, maior probabilidade de evitar uma gravidez involuntária em épocas de surto viral. Para a mulher pobre – muitas vezes também negra -, a margem de “escolha” é sempre consideravelmente reduzida

Argumento clássico do campo “pró-vida” é que, uma vez descriminalizado o aborto, as mulheres passarão a abortar com a leveza de quem toma uma aspirina. O argumento é de um paternalismo insuportável. Trata todas as mulheres como irresponsáveis, insensíveis e inconsequentes, que, sem a tutela de uma figura de autoridade (pai, marido, Estado, Lei, médico), serão capazes de tomar uma decisão como a de abortar sem o menor dilema de consciência. Mais uma vez, o argumento não corresponde à realidade: para a maioria das mulheres, a decisão de abortar engloba grande custo psicológico. Acredito nas mulheres como pessoas com autonomia moral para fazer suas próprias escolhas; por isso também me dói ver este raciocínio paternalista ser repetido, ao só se permitir o debate sobre o aborto à luz do medo da deficiência.

 

– A possibilidade de liberação do aborto nos casos de contaminação por zika.

Com relação à possibilidade de descriminalização do aborto para mulheres grávidas que contraíram o zika, não consigo deixar de pensar nas mais pobres, justamente as mais afetadas, morando em áreas sem saneamento, de grande incidência do mosquito. Em meio ao abandono generalizado por parte de um Estado que, em vez de controlar a epidemia, prefere controlar os corpos das mulheres,  de uma sociedade que discrimina as pessoas com deficiência, e de uma comunidade que não inclui, o aborto legalizado pode ser para essas mulheres, já tão maltratadas por tantas opressões e negligências, uma saída. Mas é importante lembrar: uma saída não é uma escolha. Como feministas, temos que lutar para que as mulheres tenham escolhas. E ser pró-escolha de verdade, frente a esta epidemia, implica também desconstruir nosso capacitismo, lutar por apoio da comunidade e do Estado para todas as mães. Ser pró-escolha de verdade implica entender nossos direitos reprodutivos em uma chave mais ampla, como ensina Alicia Garza do “Black Lives Matter”.

Uma parte de mim pensa: mas uma saída é melhor que nenhuma. Sou mãe de autista, e sei na carne que a lógica da sociedade e do Estado é da privatização do cuidado: cada família (cada mãe!) que se ocupe do seu “problema”, com os recursos financeiros, emocionais e intelectuais que tiver. O Estado só se lembra da gente na hora de nos processar por abandono de incapaz; a sociedade, na hora de nos julgar e nos censurar.  Não acredito que submeter precisamente as mulheres mais sem recursos, mais expostas a uma epidemia que floresce na pobreza e na falta de saneamento, a “escolher” entre exercitar uma maternidade particularmente desafiadora em condições de precariedade e abandono, ou então a arriscar a vida em um aborto clandestino, reforce a dignidade das pessoas com deficiência. Reforça, como já mencionei, o poder dissuasório do direito penal. E o pouco valor que a sociedade patriarcal dá à vida das mulheres, à possibilidade de que mulheres venham a ter uma vida plena.

Já outra parte de mim pensa: esta liberação do aborto em casos de contaminação por zika passa a mensagem de que o Estado não confia nas mulheres para tomar decisões, mas abre uma exceção para evitar a terrível, temível deficiência. Adicionalmente, eventual liberação do aborto nestes casos convidaria a uma maior culpabilização das mães de bebês com microcefalia: podia ter abortado e decidiu ter, agora aguente as consequências.  É a desculpa perfeita para um Estado e uma sociedade omissos continuarem a se omitir, no tocante ao apoio às famílias afetadas pela deficiência. O aborto em casos de contaminação por zika, em vez de uma escolha, será praticamente compulsório.

Com as ressalvas e as ponderações feitas ao longo deste artigo, deixo clara minha posição pessoal: sou a favor da liberação do aborto, para todas as mulheres. Não só para as infectadas pelo zika. O direito ao aborto não como uma exceção aberta pelo terror à deficiência, a ser exercitado como um “mal menor” em hipóteses específicas, mas como afirmação da mulher como sujeito capaz de fazer escolhas morais. Sou a favor de que as mulheres possam fazer uma escolha bem informada, e que tenham opções reais. Sou a favor de que possamos construir uma sociedade onde ter um filho com deficiência não seja tão oneroso que pareça uma opção inviável. Sou a favor de, como sociedade, traduzirmos nosso alegado apreço pela diferença em ações concretas, capazes de reduzir as barreiras enfrentadas pelas famílias com deficiência. Sou a favor de um debate menos binário e mais multifacetado em um assunto complexo como o aborto. E sou a favor de que cada mulher seja livre para fazer seu julgamento moral sobre os temas que afetam sua vida – da mesma forma em que sou a favor de desconstruir estereótipos, barreiras e atitudes que desvalorizam a vida das pessoas com deficiência.

 

 

Ana Nunes é mãe de uma menina autista e autora de “Cartas de Beirute – Reflexões de uma Mãe e Feminista sobre Autismo, Identidade e os Desafios da Inclusão”.

 


[1] http://jornalggn.com.br/blog/meire-cavalcante/deficiencia-como-tragedia-ou-nosso-tragico-preconceito-0

[2] http://saude.estadao.com.br/noticias/geral,homens-abandonam-maes-de-bebes-com-microcefalia-em-pe,10000014877

[3] http://www.brasilpost.com.br/daniela-lima/gravidez-mulheres-zika_b_9163830.html

[4] http://observatoriodaimprensa.com.br/jornalismo-e-saude/o-virus-zika-e-a-eugenia-branda/

[5] http://brasil.elpais.com/brasil/2016/02/15/opinion/1455540965_851244.html

[6] http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2016/02/04/nao-grite-eugenia-ouca-as-mulheres/

[7] http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2016/02/15/tolerancia/

[8] http://odia.ig.com.br/noticia/brasil/2015-03-24/projeto-de-lei-que-legaliza-aborto-e-protocolado-na-camara.html

[9] http://www.nytimes.com/2016/02/04/world/americas/zika-virus-brazil-abortion-laws.html

[10] http://www.theguardian.com/world/2016/feb/03/zika-virus-transmission-sex-us-case-mosquito

[11] http://www.nytimes.com/2016/02/01/health/microcephaly-spotlighted-by-zika-virus-has-long-afflicted-and-mystified.html

[13] Para fins de ênfase, neste parágrafo igualei o feto às pessoas já nascidas – o que, como já abordei, é discutível tanto cientifica como juridicamente.

[14] Nas palavras de Richard Dawkins: “àqueles que se ofenderam (com minha declaração) porque conhecem e amam uma pessoa com Síndrome de Down, e que pensaram que eu estava dizendo que seu ente querido não tem o direito de existir, saibam de minha simpatia por este argumento emocional, mas que é um argumento emocional, e não lógico.”  (http://www.theguardian.com/science/2014/aug/21/richard-dawkins-apologises-downs-syndrome-tweet )

[15] https://bitchmedia.org/article/leaders-speak-out-against-co-opting-blacklivesmatters-push-anti-abortion-laws