O spimbolo hippie cercado de figuras humanas

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A intolerância ao diferente apoiada por uma campanha de higienização social em Belo Horizonte, assume ares de politica repressiva de caráter criminal.

Administração municipal, policia militar e mídia se associam na tarefa de criminalizar o artista de rua, artesãos nômades portadores de um patrimônio cultural brasileiro que deriva da resignificação do movimento hippie das décadas de 60 e 70. Uma cultura com mais de 40 anos.

Mas quem criminaliza o Estado?

Com expressões próprias na arte, na música e no estilo de vida, os artesãos são perseguidos, saqueados em seus bens pessoais e presos por desacato ao exercer a legitima desobediência civil.

Artigo 5º da Constituição Federal:
II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

A Violação do estado democrático de direito e do princípio da Legalidade. Quando o Estado se torna o criminoso.

Dentre os princípios que regem a Administração Pública, destaco aqui o princípio da legalidade, que surge como um desdobramento do princípio da indisponibilidade do interesse público. Segundo tal princípio, o administrador deve agir segundo a lei, só podendo fazer aquilo que a lei expressamente autoriza e, no silêncio da lei, está proibido de agir.

“Art. 5, II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;”

Como então legitimar as apreensões de mochilas, cobertores, ferramentas e matérias-primas dos artesãos nômades que expõem na cidade de Belo Horizonte?

Art. 5º, LIV, da CF:“ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

Ser artesão é um crime?

Não existe nenhuma legislação específica que trate do assunto ou que venha tipificar tal jeito de viver (o do artesão), como crime. Portanto, mais do que uma agressão moral à dignidade humana, a prefeitura de Belo Horizonte tem cometido violações sérias, que poderão ser reconhecidas como uma improbidade administrativa, sério sintoma de ineficiência funcional e atentado contra o estado democrático de direito.

Importante lembrar que essas ações não começaram ontem. Há anos os artesãos vêm sendo saqueados pelo Estado e, de acordo com outras denúncias, essa ação se tornou um “modus operandi” do município. A mesma ação contra os artesãos tem sido aplicada aos moradores de rua. Estamos tratando apenas da ponta de um iceberg.

Artigo 118 do Código de Posturas de Belo Horizonte –

Uma lei específica, aplicada de forma genérica a um grupo específico

Atualmente os artesãos nômades vêm sendo autuados pelo artigo 118 do Código de Posturas do município de Belo Horizonte. Vejamos o que ele diz:

Art. 118 –“ Fica proibido o exercício de atividade por camelôs, toreros e flanelinhas no logradouro público”.

Observe que esta lei especifica seus infratores, dividindo-os em 3 categorias. Isso se dá porque comercializar em via pública não é proibido em Belo Horizonte. Existem vendedores de jornais, engraxates, pipoqueiros e outros, mas todos devem passar por um processo de licenciamento, de acordo com a sua regulação específica.

No caso dos artesãos nômades, falta regulação. O Código de Posturas não aborda o tema dos artesãos nômades e enquadrá-los no artigo 118, como vem fazendo a prefeitura de Belo Horizonte, trata-se de uma ilegalidade, tendo em vista que artesãos são artesãos, não são camelôs, nem toreiros e nem flanelinhas, com todo o respeito e reverência a quem encontra nesse jeito de trabalhar a forma de sobreviver.

Portanto, invoco aqui mais uma vez o “princípio da legalidade”:

“Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia combinação legal.”

Até mesmo a prefeitura sabe dessa falha legal e portanto, sempre que faz referência aos artesãos, insiste em chamá-los de camelôs, toreros ou ambulantes, para reforçar a veracidade do equívoco.

Vale a pena lembrar o acontecido no dia 18/4/2010. Às vésperas da comemoração do dia do Indio, um grupo deles foi proibido de expor em local público de BH, sendo utilizado para tanto o mesmo artigo 118.

Vamos então reler o artigo, porém adaptado à realidade prática que a prefeitura utiliza:

Fica proibido o exercício de atividade por camelôs, toreros, flanelinhas, índios e artesãos nômades no logradouro público.

Bem, a meu ver tem algo de estranho aí… A grande questão é que ao contrário do camelô, do torero e do flanelinha, os índios e os artesãos nômades possuem uma cultura própria, estilos de vida, modos de convivência, sistemas de valores, tradições e crenças próprios de uma cultura específica.

Ou seja, você não pode pedir a um índio que deixe de ser índio. Muito menos um artesão nômade deixará de ser quem ele é. Estamos falando de identidade e de objetos culturais decorrentes da subjetividade do indivíduo que tem uma vivência cultural diversa e que, através destes objetos culturais (artesanatos), reforçam e transmitem à sociedade seus valores.

Assim como temos o dever de respeitar o índio na sua cultura, considerando suas peculiaridades e aceitando suas diferenças, também deve ser o tratamento do Estado com relação ao artesão nômade. E para que haja respeito deve-se conhecer o outro. Esta lacuna de informação é um dos principais geradores de preconceito e dos atos de violência que se sucedem.

Afinal, deixo-lhes a pergunta: você por acaso sabe realmente o que é um hippie?

Em geral, o modelo de hippie contemporâneo divulgado na mídia é extremamente folclorizado. Nada tem a ver com a cultura do “maluco de estrada”, esta sim uma boa designação para o movimento contemporâneo que viaja pelo país, sendo o artesanato uma ferramenta de troca, doação e de venda também.

O “maluco” não objetiva lucro em seu trabalho, e toda grana que ganha reinveste no próprio local em que está. É uma estadia num hotel, um café na padaria, um ônibus para a próxima cidade, um fio de arame pra “trampar”, umas pedras e miçangas. O artesão paga imposto sim. Está embutido em todas estas coisas que ele consome, mas sobretaxar seu espírito criativo, que dá forma à matéria que ele trabalha é ilegal e absurdo.

O artesão não possui um posto de venda. Ele está de passagem, abre o pano no chão em local público, mostra sua arte e, se alguém se identifica com aquele trabalho, fruto da subjetividade do viajante, ele pode querer comprar. É uma ocupação efêmera, pois logo ele quer seguir viagem, ir para outro lugar. E a relação de preço que o artesão dá ao seu “trampo” é extremamente relativa, depende do humor dele, depende do carisma da pessoa que quer comprar, depende da situação em que ele está, do local onde ele está e outras tantas variantes incontavéis. Já um camelô não, ele compra uma coisa por “x” e vai vender por “y”, o lucro entre um e o outro é o seu objetivo. São conceitos totalmente distintos.

A Convenção da Unesco de 2005

A maioria da população ainda desconhece um documento internacional desenvolvido pela Unesco com o apoio de diversas instituições e ratificado pelo governo brasileiro através do Decreto legislativo 485/2006. Este documento se chama “Convenção sobre a proteção e promoção da Diversidade Cultural”.

A “convenção” é um documento normativo de caráter vinculante, que cria compromissos para os países signatários, além de servir de base para o desenvolvimento de políticas públicas nos âmbitos federal, estadual e municipal, sempre relacionadas à diversidade cultural e sua promoção e proteção.

Algumas das diretrizes deste documento reforçam as seguintes ideias:

-A convenção tem como objetivo principal proteger e promover a diversidade das expressões culturais, materializadas e transmitidas principalmente pelas atividades, bens e serviços culturais, “vetores contemporâneos da cultura”,

– As atividades, bens e serviços culturais possuem dupla natureza, tanto econômica quanto cultural, uma vez que são portadores de identidades, valores e significados, não devendo, portanto, ser tratados como se tivessem valor meramente comercial. Os bens e serviços culturais são, assim, subtraídos à pura comercialização.

– Reconhecimento da necessidade de adotar medidas para proteger a diversidade das expressões culturais incluindo seus conteúdos, especialmente nas situações em que expressões culturais possam estar ameaçadas de extinção ou de grave deterioração,

Ou seja, tanto o índio, quanto o artesão, produzem um “objeto cultural”, carregado de significados e o seu comércio não pode ser nivelado ao de um produto industrializado, nem tampouco o artista ser considerado camelô. É diferente! Pode até haver camelô artista, mas artistas de rua não são camelôs.

É normal que a maior parte da população ainda não tenha conhecimento desta mudança de paradigma que, pouco a pouco, se faz presente nas modernas políticas públicas ligadas à cultura.

Porém, a prefeitura de Belo Horizonte não desconhece este documento, ela simplesmente o ignora. E não regula a atividade do artesão, nem a do índio, porque se assim fizesse, teria de adequá-las a este novo paradigma, considerando toda a complexidade que envolve ambas as culturas.

É a política da invisibilidade, da negação da existência do outro, do diferente.

Fonte: www.abelezadamargem.wordpress.com