A cabeça de um leão sobre fundo escuro

Por Renan Schuindt
no Viva Favela

Costa-Barros (Zona Norte RJ) é o segundo colocado no ranking de menor IDH da Cidade Maravilhosa. Um lugar que assombra qualquer um que passe por ele. Até mesmo em ouvir falar as pessoas se aterrorizam… Verdadeiras guerras urbanas acontecem aqui, minha casa mesmo já foi alvejada dezenas de vezes. Sentiu arrepios? Pois bem, esse é o lugar que moro, e o pior, é onde crio meu filho.

Um dia eu estava em casa deitado no sofá, assistindo a um programa de culinária, e bem na hora da receita passou um carro de som, pensei… Só pode ser o carro velho do peixeiro ou coisa parecida. De uma coisa tinha certeza, não era o carro do circo… Acredite, já passou aqui em Costa-Barros, e muitas vezes, no início da década de 90. Era um Maverick branco caindo aos pedaços anunciando o Circo Três Poderes, com um leão na jaula sendo rebocado para promover ainda mais o circo, um leão com idade avançada para exercer atividades num circo, era magrinho, cheio de sono, parecia esperar sua partida para um local sem grades.

De uma forma ou de outra, era um leão. Toda vez que ele passava eu ia correndo atrás, a troco de nada, era o encanto pela arte florescendo. O ingresso custava R$ 1,00 e mesmo assim às vezes eu e meus amigos não tínhamos essa grana pra assistir ao espetáculo. Pela manhã, o motorista do Maverick trocava um gato por dois ingressos… Os bichanos serviam de petisco para o Rei da Selva, então por amor à arte lá íamos nós para o velho mercado da troca, mas isso era mantido em sigilo.

Lembro-me que por duas vezes o circo recebeu atrações ilustríssimas, sério mesmo, Rony Cócegas, com seu personagem Lindeza e seu famoso bordão “Calma Cocada!” e o Astro-Rei: Papai Noel, já pensou? Até o bom velhinho passou por aqui, de verdade, eu mesmo vi. No dia em que o Rony se apresentou notei que o motorista do Maverick também exercia os papéis de acrobata (na temida corda bamba de 2 metros de altura), mágico (ele tirava moedas de nossas orelhas e narizes, truque que até hoje faço com meu filho Ramon, ele adora) e domador (de cães, já que o leão só dormia e comia gatos) e falavam que ele também era o dono do circo.

Perdoe-me, propositalmente tive que viajar, mas se fazia necessário. Retomando… Estava eu deitado no sofá, era início de 2007, e um carro de som passa na hora da receita. Levantei e fui até o portão, avistei um carro branco, aquela cena me remetia ao passado, ao circo e sobretudo à arte. Claro que não pude ver meus olhos naquele momento, mas sei que foram talvez não os mais brilhantes do mundo, porém, os mais brilhantes de Costa-Barros. Você deve estar achando que era o carro do circo… Seria lindo.

Mas arte é arte de qualquer forma, e foi lindo, não foi a magia do circo que fez meus olhos brilharem, foi a magia do cinema, isso mesmo era o carro do cinema… Abri o portão e ouvi o anúncio de uma escola de cinema em Costa-Barros, saí correndo e bati na porta da escola como se estivesse levando um gato para trocar por um ingresso. Só que isso era coisa de moleque e agora eu estava velho para estudar cinema no meu bairro, tinha ultrapassado dois anos da idade limite para estudar na escola.

Toda a minha vontade, todos os gatos que juntei para trocar por um futuro em que sempre sonhei não serviriam de nada? Meu sonho seria como o circo? Tão perto de mim, aqui em Costa-Barros, e ao mesmo tempo… Tão irreal. Claro que não, o diretor da escola Luz, Câmera e Ação me viu como o motorista via aquele leão… Velho, sonolento e faminto por algo que nem sabia se daria certo… Mas que tinha a sua luz, seu brilho e seu valor.

Ele me deu uma chance, abriu as portas para que eu pudesse me descobrir e descobrir o cinema. Hoje entendo que aquele leão era a peça fundamental para atrair a molecada para dentro do circo pra que o motorista pudesse mostrar um mundo de possibilidades. Sou professor dessa mesma escola e de outras. Somos como o motorista e o leão, levamos esperança a todos que precisam dela.

Fonte: Viva Favela