Moteiro Lobato: a caçada e os caçadores

Por Liliane Garcez.
Estamos em um tempo onde preconceitos e estereótipos têm povoado nossos e-mails. Base fértil para sua propagação tem sido a utilização de fragmentos de informação. Lembrei-me de Benjamim “Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento de barbárie”. Documentos da cultura não são para serem esquecidos, passados a limpo, pois são registros de memória, de um tempo, de um modo de vida com suas dores e delícias. Ou ainda, nas palavras do autor do comentário: as palavras são a carne do mundo. Como tal, seu uso, é como retrato de cada uma das épocas históricas. Não podem ser, pois, substituídas.
Lendo o comentário, fiquei, posso dizer, indignada com a posição do Conselho Nacional de Educação. Brinquei muito com Pedrinho, Narizinho e Emília. Era capaz de ouvir a voz de Dona Benta e Tia Anastácia contando estórias. E o cheiro de seus bolinhos…povoaram meu quarto por anos a fio. Como alguém podia impedir, com um parecer, que as crianças pudessem conviver com eles como eu convivi? Fiquei perplexa.
Fui, em busca do tal parecer. Enorme, como todos. Diferente do tom envolvente dos textos de Rubem Alves, técnico. Quase desisti. Parecia uma perda de tempo se já sabia o final.
Primeira surpresa: ele se originou de uma denúncia de um estudante de pós-graduação da Universidade de Brasília que justamente dedica-se as questões étnico-raciais, protocolada no ofício nº o Ofício nº 041761.2010-00, relativo ao Processo 00041.000379/2010-51. Não partiu de ‘autoridades especializadas’.
O que solicitava? Que da mesma forma que uma nota de rodapé explicava que caçadas de onças estavam circunscritas a um tempo em que não havia a proteção do IBAMA a animais silvestres, que fossem feitos ‘esclarecimentos’ sobre as diferenças nas relações étnico-raciais daquele tempo e de hoje. Esse era o teor da denúncia, que, partindo da sociedade, configura-se em exemplo de pleno exercício do controle social em relação à política e às práticas educacionais, indica o fortalecimento do processo democrático em nossa sociedade.
Interessei-me em continuar lendo. Afinal, se achamos importante explicar alterações em relação à proteção animal, certamente, seria também de interesse da sociedade brasileira saber que nosso país, hoje, assume a política pública antirracista como uma política de Estado, baseada na Constituição Federal de 1988, que prevê no seu artigo 5º, inciso XLII, que a prática do racismo é crime inafiançável e imprescritível. Saber que, para a educação, está posta a necessidade de estudarmos as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente as matrizes indígena, africana e europeia, assim como a obrigatoriedade do estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.
Mais um aspecto interessante: o requerente fala a partir da utilização dessa obra em uma escola privada, a despeito do mesmo título fazer parte do acervo distribuído pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola. Sua atitude reflete, assim, a ideia que a lei educacional no Brasil engloba a todas as instituições de ensino, sejam elas mantidas com dinheiro público ou privado.
Finalmente, indica que, neste caso como em outros onde apareçam estereótipos raciais, a Coordenação-Geral de Material Didático e a Secretaria de Educação Básica do MEC deverão exigir da editora responsável pela publicação a inserção no texto de apresentação de uma nota explicativa e de esclarecimentos ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam essa presença na literatura. Tal procedimento está de acordo com o Parecer CNE/CP nº 3/2004 e a Resolução CNE/CP nº 1/2004, que instituem as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura.
O parecer fala ainda que as escolas devem fazer avaliação do acervo bibliográfico, literário e dos livros didáticos adotados pela escola, bem como das práticas pedagógicas voltadas para a diversidade étnico-racial dele decorrentes. Em relação ao Estado, que essa ação não seja isolada e sim articulada com ações de formação de educadores.
Finaliza considerando que “A despeito do importante caráter literário da obra de Monteiro Lobato, o qual não se pode negar, é necessário considerar que somos sujeitos da nossa própria época, porém, ao mesmo tempo, somos responsáveis pelos desdobramentos e efeitos das opções e orientações políticas, pedagógicas e literárias assumidas no contexto em que vivemos. Nesse sentido, a literatura em sintonia com o mundo não está fora dos conflitos, das tensões e das hierarquias sociais e raciais nas quais o trato à diversidade se realiza. São situações que estão presentes nos textos literários, pois estes fazem parte da vida real. A ficção não se constrói em um espaço social vazio”.
Depois da leitura, de posse dessas informações, mudei de ideia. Concordei com a parecerista, que em nenhum momento desmerece a obra ou a figura pública de Monteiro Lobato. Não apela para sentimentalismos ou instiga disputas entre poetas, escritores, intelectuais, especialistas em literatura, governo, povo. Serena, aponta algumas ações que mostrem didaticamente, a luta pela efetivação dos direitos humanos no Brasil ao deixar claro o papel da escola no processo de educação e (re)educação das (e para as) relações raciais, a fim de superar o racismo, a discriminação e o preconceito.
Lembrei-me agora de Vladimir Safatle que afirma ser a ironia uma forma de ideologia.
O artigo não trata de proibições, perseguições àqueles que viveram, a cada época, situações que hoje enquadram na definição de racismo. Não se trata de apagar palavras e com isso o direito a memória e a história. A noção de purificação e higienização são afetas ao próprio racismo, ao preconceito, a hierarquização das pessoas por conta de características.
Não reeditarei uma dualidade já conhecida na qual o medo se contrapõe à esperança. No livro a “Homens em tempos sombrios”, Hanna Arendt aponta que a despeito da cólera ser considerada uma emoção agradável para os gregos, a esperança e o medo eram colocados na categoria dos males, posto que caracteriza realidade pela quantidade de essa que a paixão transmite à alma humana. “Na esperança, a alma passa por cima da realidade, e no medo foge dela”. (ARENDT, 1991, p.15). Em disputas como esta, em que uma proposta é ou isolar-se da realidade do mundo comum e continuar dirigindo-se para um determinado grupo ou submeter-se ao não-enfrentamento das questões postas por meio de um “polianesco” ou mercadológico canto da sereia, perdemos todos.
Ao assumirmos nosso passado e registrarmos nossa memória abrimos o espaço do debate público de como éramos, como somos e quais nossa utopias hoje, freireanamente falando.
Com notas de contextualização como forma de apresentar um tempo que já não há, todos os livros poderão frequentar as escolas e continuar fazendo as crianças sonharem com o Sitio do Picapau Amarelo localizado em um mundo mais justo e solidário.
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Fonte: A autora
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