Sequestro eleitoral
Também publicado no Observatório da Imprensa, na Envolverde e na Via Política.
A maior das dívidas eleitorais não é aquela a quem cabe julgar, já consagrados os vencedores do pleito, os Tribunais de Contas. Tampouco é a que está nas mãos dos costumeiros e pomposos doadores de campanha que, pasmados pela ambiguidade, chegam mesmo a fazer donativos a campanhas até mesmo oponentes, espreitando qualquer resultado possível. A maior das dívidas eleitorais, entretanto, é aquela que o povo tem para com seus representantes.
Ao contrário do que possa parecer num exame apressado, são os governantes e demais ocupantes de cargos públicos que tomam do povo sua confiança e credibilidade, e não vice-versa. Logo que acaba o período eleitoral, um vazio intenso assola a sociedade. Esse vazio é a expressão do desejo e da esperança de cada um que foi tomada pelos candidatos e transmitida agora através das urnas eletrônicas que se instalam por todo o país, coletando o voto das periferias e dos bairros nobres, dos confins setentrionais e meridionais e também das grandes capitais, no que é chamado por alguns de “a mais legítima festa democrática”.
Ruim com ele, pior sem ele
A definição de democracia como o mero direito ao voto, apesar de muito encontrada na cobertura jornalística nestes dias, é praticamente um sequestro que se pratica nas intenções individuais. É como se ao cidadão fosse dito: “Muito bem, você já fez sua parte e mostrou no que crê, agora nós daremos um jeito nisso (de acordo com a nossa própria agenda de interesses, é claro), você não precisa mais se preocupar com isso. Volte daqui há 4 anos.” Assim, sequestrado, o cidadão guarda seu comprovante de votação e pode assistir a máquina burocrática do Estado recompor-se para, entre muitas outras coisas, passar a preocupar-se em como fixar-se no poder ou, no caso dos derrotados, equipar-se em novas estratégias mais eficazes para tentar chegar lá mais uma vez.
Sem quem se ofereça a pagar pelo resgate de sua credibilidade e sem nenhuma instituição formal para a qual possa reclamar a titularidade de sua dívida, o cidadão comum já pode vagar tranquilamente mais uma vez, sabendo-se refém e impotente diante de sua própria impotência delegada. Ao longo destes quatro anos, farão com que frequente eventos fundamentais que chegarão a sobrepor-se no calendário, lhe dirão que ocupe espaços participativos nos quais o Estado tem sempre a palavra final ou, quando não a tem, faz desses ínfimos momentos participativos exatamente o que bem entende, de acordo com as influências mais influentes e, em temas mais críticos como aborto, ensino laico, homossexualidade, reforma agrária e ações afirmativas, por exemplo, os muxoxos costumeiros através dos quais vem conduzindo a sociedade brasileira desde sua redemocratização.
Mas, ao menos, há o direito ao voto. Um direito obrigatório, é verdade, e que se fosse opcional talvez mostrasse o único possível verdadeiro raio x da sociedade brasileira. Ruim com ele, muito pior sem ele. Mais importante que o voto só mesmo o Twitter porque, afinal, de que vale ter um candidato em segredo? Muito provavelmente no futuro, com a democracia “aperfeiçoada”, a urna eletrônica terá conexão até mesmo com as redes sociais, dispensando definitivamente a duplicação de esforços. Ou então as redes sociais poderiam até mesmo substituir a urna eletrônica, bastaria verificar o candidato mais mencionado e pronto, sem falar na possibilidade do retorno do voto nulo, onde os inconformados sempre puderam exercer, na época do voto em papel, o seu pleno direito à contrariedade.
Retornar à vida comum
Agora que está acabando o período de escândalos, pelo menos o período em que oportunamente eles vêm à público, que está terminando finalmente o período de promessas, cartas coletivas de apoio a A ou B, marketing político, promessas, jingles enfadonhos, compromissos esquivos, declarações medievais e tantas outras espécies de fenômenos típicos do período eleitoral, o sopro da esperança voltará ao seu estado de sempre, o de permanente adiamento. A vida prática da população comum continuará a ocupar as páginas do que em muitos jornais chama-se “Geral”, e também da polícia, não se pode negar isso. Seus sonhos serão transferidos para a crônica esportiva e à antecipação dos capítulos das telenovelas.
Profecias à parte, os exemplos acima referem-se ao passado, não ao futuro, e é muito provável que ele torne mesmo a repetir-se. Um déjà-vu sinistro que revelará mais uma vez a mesmice e a perpétua imobilidade social brasileira. No último momento, provavelmente ainda restará dúvida em todas as mentes, afinal tentaram lhe convencer de que esta eleição, como nunca antes, se trata de algo como um cara ou coroa e que a moeda em questão tem duas faces, bem e mal. Diante da perspectiva de continuidade do atual governo ou diante da opção contrária, os dias que restam deveriam ser decisivos para algo mais que o resultado final, mas é tolice pensar nisso, numa hora dessas.
Por sorte que você já sabe que foi sequestrado. Só falta lhe colocarem de encosto à parede.
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* Coordenador da revista digital Inclusive: inclusão e cidadania e autor de Morphopolis.
Parabéns pelo excelente artigo, retratou na íntegra meus sentimentos em relação as eleições, diga-se de passagem, permito-me uma correção,a cada dois anos somos sequestrados.