Iniciativas governamentais e da sociedade civil brasileira começam a atentar que a deficiência física e intelectual é um elemento vulnerabilizador nos casos de violência sexual. Para combater o problema, manifestações demandam que políticas públicas incluam programas e ações de prevenção

É raro encontrar uma pessoa no Brasil que ainda não tenha ouvido falar de abuso sexual contra crianças e adolescentes. O problema é tema recorrente nos jornais, na internet e nos programas de rádio e tevê. Além disso, nas últimas décadas, costuma ser anunciado como prioridade na pauta de organizações não governamentais e nas ações dos governos Federal, estaduais e municipais. Apesar do debate, muitos aspectos permanecem no mais terrível silêncio. Um deles é a violência sexual contra crianças, adolescentes e jovens com deficiência. A estes, tão credores de direitos como qualquer outro cidadão, ainda não foram garantidas condições de escapar de seus agressores e de situações extremamente violentas. E os casos não são poucos.

Para Itamar Gonçalves, coordenador de Programas da Childhood-Brasil, organização que trabalha no enfrentamento à violência sexual, crianças e adolescentes com deficiência estão mais expostos ao problema porque, muitas vezes, os adultos não acreditam no que elas contam. “A violência sexual normalmente já é marcada pelo silêncio e medo. A deficiência potencializa isso. Há casos, em que a situação só vem à tona quando há uma gravidez”.

A ausência de programas e ações voltadas para a prevenção é outro obstáculo no enfrentamento dos crimes sexuais contra meninas e meninos com deficiência. Daniele Bastos, assistente de projetos da ONG Escola de Gente, organização carioca que atua na inclusão da pessoa com deficiência por meio da comunicação, aponta que a recorrência de relatos de vítimas de abuso sexual fez com que se tentasse articular um projeto específico para a área, mas a empreitada esbarrou justamente na ausência de dados que relacionem violência sexual e deficiência. “Este é um assunto a ser pensado urgentemente, a começar pela dificuldade em reunir informações”, denuncia.

Traumas

Tais entraves fazem reproduzir pelo Brasil casos como o do estudante João. Com 23 anos, ele fica nervoso e precisa de calmantes toda vez que relata os episódios de abuso sexual que sofreu desde criança. Diagnosticado com deficiência intelectual e com dificuldade em sua locomoção, João não conseguia denunciar as violências cometidas pelo padrasto, e que só foram descobertas aos 16, quando o homem foi flagrado em seu quarto.

A situação de João não difere em quase nada da de tantos meninos e meninas abusados no Brasil. Porém, traz um agravante. Com deficiência motora, João nunca teve condições de correr de seu agressor e, com a voz embaraçada, também enfrentava mais dificuldades em verbalizar o abuso para a família. Mesmo com a prisão do padrasto, só agora João será ouvido no processo que apura as responsabilidades. “Todas as testemunhas já foram ouvidas, mas a Justiça o considerava incapaz de relatar o fato”, afirma a advogada do rapaz.

Falta uma visão mais abrangente

A socióloga Marlene Vaz, que há anos pesquisa os fenômenos do abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes, afirma que existe uma distância entre a gravidade da situação e as ações preventivas. Já a secretária-executiva do Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, Neide Castanha, confirma a precariedade de informações que relacionam violência sexual e deficiência. Segundo ela, para enfrentar a violência sexual contra qualquer criança ou adolescente, é preciso políticas baseadas na intersetorialidade, em uma visão sistêmica e na integração. “Ainda temos uma cultura muito fisiologista e autárquica, que conduz ao pensamento de que determinada ação pertence a essa ou àquela organização. Isso é o oposto da integração e entrava o sucesso das ações”. Apesar da crítica, Neide aponta avanços. “Ainda não há visibilidade de resultados, mas estamos no caminho certo. Quando começamos a enfrentar a violência sexual de forma organizada, não tínhamos sequer um marco teórico que nos dissesse o que é intersetorialidade. Hoje já vencemos essa questão e podemos pensar em vários recortes na violência sexual, entre eles a deficiência, por exemplo”.

Mesmo incipientes e pouco visíveis, aos poucos surgem os primeiros movimentos que consideram a deficiência como mais um elemento vulnerabilizador à violência sexual. No final do ano passado, a Secretaria Estadual da Pessoa com Deficiência de São Paulo abrigou um evento internacional para discutir interfaces relacionadas ao desaparecimento e à exploração sexual de crianças e adolescentes. Na abertura, a professora Gilka Gattás, coordenadora do Projeto Caminho de Volta, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), apresentou dados que apontam que entre 8% e 10% das crianças e adolescentes desaparecidos têm deficiência intelectual ou física.

Outro avanço são as parcerias entre sociedade civil e Estado. Este ano, a Childhood Brasil lançou o Guia de Referência – Construindo uma Cultura Escolar de Prevenção à Violência Sexual, e dedicou algumas páginas da publicação à questão das crianças com deficiência. Realizado em parceria com a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, o guia menciona, por exemplo, que as crianças com deficiência que sofrem abuso resistem a fazer a higiene pessoal, apresentam piora no desempenho intelectual e mostram um comportamento sexual inadequado para a idade física e mental.

Articulado com as demais ações da organização, o guia aposta no trabalho colaborativo – já houve parcerias com gestores de outros estados e municípios brasileiros –, na integração de redes e na informação de profissionais que estão em contato direto com meninos e meninas. Para Itamar Gonçalves, o caminho para enfrentar a violência sexual que afeta crianças e adolescentes, incluindo os com deficiência, está na atenção integral em áreas como saúde, educação e assistência. É preciso, explica ele, oferecer os serviços que esses grupos etários e suas famílias precisam. “Ás vezes, a criança revela o abuso na escola, no posto de saúde; e o profissional que a atende necessita estar preparado para identificar o problema e encaminhá-la à rede de assistência”, conclui.

Violência Silenciosa

A violência sexual contra crianças e adolescentes com deficiência é tão comum quanto silenciosa. Atualmente, no Brasil, não existem dados sobre o fenômeno. O Disque Denúncia Nacional, o Disque 100, que é um dos mais completos registros sobre a questão da violência sexual, recolhe as informações sobre a condição da vítima, inclusive se apresenta alguma deficiência, mas ainda não incluiu esse tipo de dado em seus relatórios. A SEDH, órgão gestor do Disque 100, informa que o software da Central de Atendimento do Disque Denúncia Nacional está em fase de migração para outro sistema que possa facilitar a extração e o acompanhamento dos casos e, a partir de fevereiro de 2010, será possível um acompanhamento mais detalhado sobre a questão de pessoas com deficiência que foram vítimas de violência.

Uma realidade ainda invisível

Para organizações que atuam na inclusão das pessoas com deficiência, é consenso a existência da violência sexual, agravada pelas dificuldades de entendimento, verbalização e até reação física contra abusadores. Para Eliana Oliveira Victor, vice-presidente da Associação para Valorização de Pessoas com Deficiência (Avape), a violência sexual faz parte de um cenário maior de exclusão da pessoa com deficiência, em que falta educação formal, políticas de inclusão profissional e mesmo afirmação na sociedade. “As carências são muitas e a sociedade ainda precisa entender que a pessoa com deficiência é como todos nós e tem as mesmas necessidades, incluindo o direito a uma sexualidade sadia”, sugere.

Apostando nisso, a rede de franquias social que vem sendo construída pela Avape implementa grupos de sexualidade com jovens de idade cronológica entre 18 e 30 anos, com deficiência intelectual leve. Os grupos estão hoje em oito unidades no estado de São Paulo e no Rio de Janeiro. Acompanhados por uma psicóloga, os jovens se reúnem uma vez por semana para tratar de assuntos como gravidez e doenças sexualmente transmissíveis (DSTs). Nos encontros, o tema do abuso sexual surgiu espontaneamente quando alguns dos integrantes relataram já terem sofrido violência durante a infância ou a adolescência. “Muitas vezes eles demoram a identificar, mas quando trabalham aspectos da sexualidade percebem que sofreram violência sexual”, registra.

O trabalho também envolve os familiares, que “aprendem” que seus filhos e filhas têm deficiências, mas não são assexuados. “As famílias têm dificuldade de entender a fase da adolescência”, explica Eliana. “Os pais não conseguem lidar com isso e têm muito medo da gravidez, dos abusos e dos comportamentos inadequados”, completa. Eliana também lamenta a fragilidade de políticas públicas específicas e aponta que a escola é um espaço muito importante para falar sobre os direitos sexuais das pessoas com deficiência e prevenir os crimes sexuais.

No estudo “Mídia e Deficiência”, lançado em 2003, pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância – ANDI com a parceria da Fundação Banco do Brasil, foi apresentada uma discussão sobre políticas públicas em áreas como saúde e educação sob a ótica da inclusão. Entre outras conclusões, a pesquisa trouxe à tona a questão da superproteção dos pais quando o caso é assumir a sexualidade de adolescentes e jovens com algum tipo de deficiência. O tema é polêmico e delicado, além de envolver preconceitos. Em todos os seres humanos, o desejo e as descobertas da sexualidade são sinais de saúde, mas quando o adolescente com deficiência é quem começa a conhecer pessoas e a querer namorar e buscar uma vida sexual ativa, a família muitas vezes se sente perdendo o controle sobre suas atividades, o que pode gerar medo de que ele seja rejeitado ou até mesmo sofra violências.

O resultado nem sempre é o desejado. Com a intenção de proteger os filhos, pais e mães acabam tratando jovens como eternas crianças, negando a eles o seu direito à sexualidade. Segundo o estudo, para acabar com esses receios, os processos de inclusão na escola e na comunidade são estratégias fundamentais. Se os adolescentes não puderem vivenciar a sua sexualidade de forma tranquila e segura, certamente correrão mais riscos. Muita gente prefere acreditar, por exemplo, que eles não sejam capazes de compreender os cuidados necessários para o sexo seguro. A omissão do tema em casa, na escola ou no consultório médico gera desinformação e preconceito.

Orientações para a cobertura

Tema de marco teórico recente, a questão da pessoa com deficiência requer cuidado com os termos e expressões usadas. Muitas palavras aparentemente corriqueiras segregam mais do que incluem as pessoas com deficiência. A seguir, algumas dicas para tratar do tema de forma adequada:

1. A palavra “deficiente” não deve ser utilizada como substantivo, mas cabe seu uso como adjetivo. Quando usada como substantivo, passa a impressão de que a pessoa como um todo é deficiente.

2. Não use o termo deficiência física de forma generalizada. Deficiência física diz respeito a cadeirantes, por exemplo. Para outras situações, prefira deficiência sensorial (para surdos e cegos), deficiência intelectual (para pessoas com síndrome de Down ou outras), deficiência múltipla (quando existem mais de uma dessas deficiências).

3. O termo ‘deficiência’ significa uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária.

4. A expressão “pessoa com necessidades especiais” tem origem em necessidades educacionais especiais – dificuldades ou limitações na aprendizagem, na comunicação ou ainda altas habilidades, superdotação ou grande facilidade de aprendizado – e também deve ser evitada na designação de pessoas com deficiência.

5. Algumas pessoas ainda relutam em utilizar o termo “deficiência”, acreditando ser algum tipo de ofensa, quando é apenas uma característica da pessoa.

6. Deficiência intelectual não é sinônimo de doença mental. A deficiência se refere a um comprometimento intelectual, temporário ou não, com inúmeras origens e associado à capacidade da pessoa responder às demandas da sociedade. Na doença mental, a pessoa tem sofrimento psíquico, como depressão, síndrome do pânico, esquizofrenia e outras.

Fonte: Escola de Gente e Secretaria de Estado da Pessoa com Deficiência (SP)
Material de Apoio: www.andi.org.br/_pdfs/Midia_e_deficiencia.pdf
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Fonte: ANDI