Por Lucio Carvalho, para a Inclusive

Desde o evento de posse do presidente Jair Bolsonaro, realizado anteontem (1º/01) em Brasília – DF, e mais tarde, em sua repercussão, nem um outro assunto dominou tanto a atenção pública quanto a inédita quebra de protocolo protagonizada pela primeira-dama Michelle Bolsonaro. Valendo-se de um discurso pronunciado por ela mesma na língua brasileira de sinais, Michelle emergiu de uma posição antes discreta para o centro das atenções, principalmente a das pessoas com deficiência brasileiras, “objeto” central de seu discurso.

Imagem: captura. Michelle Bolsonaro discursa em libras à frente do presidente Jair Bolsonaro e ao lado de uma intérprete.
Imagem: captura. Michelle Bolsonaro discursa em libras à frente do presidente Jair Bolsonaro e ao lado de uma intérprete.

“Gostaria de modo muito especial de dirigir-me à comunidade surda, às pessoas com deficiência e a todos aqueles que se sentem esquecidos: vocês serão valorizados e terão seus direitos respeitados. Tenho esse chamado no meu coração e desejo contribuir na promoção do ser humano”, disse Michelle Bolsonaro em libras, em imagens que percorreram e decoraram manchetes de jornais, opiniões de A a Z e os incontáveis e incomparáveis comentários de internet.

Sem deixar de ter em mente que qualquer posse presidencial é a culminância do evento eleitoral e que seu discurso também é um gesto político repleto de significados e passível de inesgotáveis interpretações, Michelle Bolsonaro imediatamente tornou-se o ícone multiverso por excelência. E, com isso, alvo de muitos preconceitos reversos também.

O multiperspectivismo da internet, como previsível, tratou logo de catalogá-la de modo muito semelhante à disputa precedente, dispensando-se, talvez, a perspectiva mais simplória entre todas: a de que pudesse estar discursando como pessoa autônoma e não uma extensão do marido ou do projeto político-ideológico que o levou à vitória eleitoral e falando de si mesma e de suas preocupações e aspirações. Trata-se de uma hipótese simplória, de fato, mas sem considerá-la é inevitável adentrar na rampa escorregadia do preconceito de gênero. Logo ele… E, como se sabe bem, combater o preconceito com preconceito já se comprovou medida das mais eficazes para generalizá-los entre a população e embrutecê-la. Na pressa por comentar, o triste hábito social ganhou grande proporção, mas em medida semelhante às pessoas que elogiaram seu gesto e discurso.

Além de sínteses de simples compreensão, preconceitos de toda a ordem tornaram-se nos anos recentes o capital por excelência das assim chamadas “guerras culturais” – para saber mais, aqui um artigo do Prof. Pablo Ortellado para o Le Monde Diplomatique onde desdobra o conceito. Nessa seara aparentemente interminável de clichês e fake news, despontam distorções amparadas no aplainamento da sociedade, eliminando-se o mais elementar relevo social e cultural. Não deixa de ser uma simplorice argumentativa que, muitas vezes, resvala facilmente para a grosseria e conflitos interpessoais, interfamiliares, etc.

O discurso simples e direto de Michelle, portanto, pode ser encarado com o mesmo binarismo com que se acostumou a sociedade contemporânea a classificar os eventos políticos. Ou foi Michelle demagógica/hábil marqueteira, ou sua aparição representaria a figuração simbólica maternal mais que perfeita, acolhedora e compreensiva. Ou marionete do marido (no que obrigatoriamente se incorreria no preconceito de gênero), ou símbolo de esperança religiosa assistencial. Talvez nada disso, ou tudo isso junto, ou até mesmo um pouco mais que isso…

No que importa às pessoas com deficiência que mencionou em discurso, impossível desconsiderar o ineditismo da menção, o que não parece pouco em se tratando de um evento com outra finalidade. Mas impossível também é precisar-se desde já no que se refletirá futuramente sua devoção ao tema. Como não existe um ponto de vista único da sociedade, a recepção ao discurso parece ter se dividido entre entusiasmo versus incredulidade. Nada de diferente ou discrepante ao que vem acontecendo na política em geral e sua recepção popular.

No entanto, no que importa ao evento em si mesmo, talvez ali o golpe mais duro contra os grupos da esquerda mais identitária que historicamente têm reivindicado a prevalência política e condução das pautas e movimentos sociais, inclusive o das pessoas com deficiência. Impacta ainda mais o fato de que, como mulher, teve seu discurso precedendo o do próprio presidente Bolsonaro e aberto por uma interpretação do hino brasileiro, em libras, por Sandro Santos, um intérprete negro e candidato à deputado federal na eleição de 2014 pelo PSOL. Tudo isso competiu para tornar o evento ainda mais desconcertante, isso numa nação já bastante entontecida e surrada por todos os ângulos e possíveis vieses ideológicos.

Para além do gesto e do discurso da primeira-dama Michelle Bolsonaro, há que considerar que a sociedade – ou, pelo menos, boa parte dela – anseia por um recesso no tom de campanha, nas guerrilhas culturais protagonizando a ação política e social do estado, e por que medidas efetivas traduzidas em efeitos perceptíveis e investimentos reais incidam para melhorar a qualidade dos serviços e políticas públicas destinadas às pessoas com deficiência de um modo geral que, como ela bem reiterou, “serão valorizadas”, preservando-se evidentemente as noções legais em vigor e a autodeterminação civil.

Para quem não estava esperando por esse ingrediente no evento de posse, vale a máxima do copo cheio/copo vazio. Cada um vê a oportunidade como consegue ou deseja. O resto é a continuação da guerrilha de sempre, os feridos, as feridas, sentimentos e ressentimentos que parecem marcar o psiquismo nacional, senão, pelo menos, seus cidadãos.

Do que se poderá obter socialmente daí, parece que isso dependerá tanto da seriedade do empenho e sinceridade de Michelle quanto da disposição civil de um país, ao que parece, ainda muito longe de pacificar-se, pelo menos no plano político e ideológico e de um transicionamento para o novo modelo estatal e governamental ainda por ser desvelado inteiramente.

A sociedade observa a primeira-dama Michelle não com o embevecimento do seu marido, evidentemente, mas como quem viu ali algo novo, inesperado e, pelo menos ao que parece por enquanto, autêntico e interessado. Só em ter atraído para si essa dimensão política e a observação de uma parcela da sociedade desejosa por efetividade parece repercutir desde já como um gesto proativo e de coragem pessoal. Em um dia de governo, parece muito justo conceder-lhe o regozijo do momento e prazo para imprimir gestos concretos em prol de suas intenções, mas da expectativa que gerou em toda a nação espera-se agora, por sua iniciativa, além de solidariedade civil e o desejo de ajudar, interlocução e influência. Há dias, pouco se imaginava e sabia da primeira-dama. Para as pessoas com deficiência, Michelle tornou-se desde ontem figura central e, a confirmar, decisiva no que diz respeito ao novo governo.