Vários lápis coloridos
Vários lápis coloridos

Por Ana Eloisa Carneiro Carvalho e Nuno Cravo Barata

Resumo

A partir de um estudo de caso de uma criança em risco com Atraso Global de Desenvolvimento, procurou-se compreender se as estratégias adotadas foram eficazes na promoção de competências parentais e da autonomia da família e na criação de oportunidades para o desenvolvimento global da criança. De forma a garantir a fiabilidade das interpretações do investigador e consequentemente que o estudo possa contribuir para o aumento das reflexões sobre as políticas e as práticas da Intervenção Precoce, optou-se por utilizar diversas fontes de dados, de cariz quantitativo e qualitativo. Concluiu-se que a intercooperação dos profissionais e da família e essencialmente o envolvimento da família no processo é conditio sine qua non para o alcance dos objetivos da Intervenção Precoce.

PALAVRAS-CHAVE 

Educação Especial, Intervenção Precoce, Atraso Global do Desenvolvimento e Família.

EARLY INTERVENTION PRACTICES: A CASE STUDY OF AN AT RISK CHILD WITH INTELLECTUAL DEVELOPMENTAL DISORDER

ABSTRACT

Based on a case study of an at risk child with Intellectual Developmental Disorder we tried to understand if the used strategies have been effective in promoting the parenting skills, family autonomy and creation of opportunities to the overall development of the child. In order to ensure the reliability of the researcher’s interpretations and so that the study could contribute to the increase in reflections on policies and practices of Early Intervention, we decided to use different sources of data, of quantitative and qualitative methodologic nature. It was concluded that the inter-cooperation of professionals and family, and essentially the family involvement in the process is a conditio sine qua non to achieve the goals of Early Intervention.

Keywords: Special Education, Early Intervention, Intellectual Development Disorder and Family.

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  1. Introdução

O presente artigo científico relata uma investigação sobre as práticas de intervenção precoce (IP) implementadas numa família com uma criança em risco com Atraso Global do Desenvolvimento (AGD), para promover as competências parentais e a autonomia da família e gerar oportunidades para o desenvolvimento global da criança nos seus contextos naturais.

A Intervenção Precoce, na figura do Sistema Nacional de Intervenção Precoce na Infância, criado pelo Decreto-Lei nº 281/2009 de 6 de outubro, constitui-se por um conjunto de medidas de apoio integrado centrado na criança e na família, incluindo ações de natureza preventiva e reabilitativa, no âmbito da educação, da saúde e da ação social. São elegíveis para este apoio as crianças entre os 0 e os 6 anos e respetivas famílias, que apresentem condições nas «alterações nas funções ou estruturas do corpo» ou que apresentem «risco grave de atraso de desenvolvimento» pela existência de condições biológicas, psicoafetivas ou ambientais, que impliquem uma alta probabilidade de atraso relevante no desenvolvimento da criança (SNIPI, 2010).

Historicamente o conceito risco relaciona-se com o termo mortalidade e, segundo Horowitz (1992, citado por Sapienza & Pedromônico, 2005), foi a partir da década de 80, com a publicação de várias pesquisas que começou a ser associado aos estudos[1] do desenvolvimento humano que procuravam definir e identificar fatores de risco a fim de avaliar a sua influência no desenvolvimento das crianças e organizar intervenções direcionadas à redução de problemas de comportamento nessa população (Sapienza & Pedromônico, 2005).

As políticas que orientam o enquadramento legal supracitado assim como as práticas daí decorrentes baseiam-se num paradigma de intervenção centrado na família onde subjaz a natureza do Modelo Ecológico de Bronfenbrenner e do Modelo Transacional de Sameroff e Chandler, com os profissionais a articularem as suas práticas através de uma cultura de transdisciplinaridade e com a transversalidade dessas práticas a ser aplicada nos contextos naturais da criança, obedecendo ao Modelo de Intervenção baseado nas Rotinas de McWilliam. Esta intervenção, dependente do envolvimento da família, requer uma avaliação dos seus recursos e necessidades, por parte dos serviços de educação, saúde e ação social, no sentido de lhe ser disponibilizado o apoio adequado que permita a potencialização das competências parentais e da sua autonomia, necessárias para a construção de interações positivas capazes de gerar oportunidades de aprendizagem para a criança.

  1. Linhas de intervenção e avaliação dos resultados

Constitui-se o objetivo geral da investigação por analisar se as práticas de IP implementadas foram eficazes na promoção de competências parentais, autonomia da família e do desenvolvimento global da criança. Os objetivos específicos da investigação constituíram-se por perceber se a intervenção foi planeada de acordo com as necessidades e recursos da família; se existiu transdisciplinaridade e transversalidade das práticas nos contextos naturais da criança; avaliar o grau de participação e envolvimento da família; concluir se a intervenção teve resultados significativos no desenvolvimento global da criança e na promoção e reforço das competências parentais e a autonomia da família.

A abordagem metodológica de investigação define-se por estudo de caso e o método de recolha de dados é de cariz qualitativo e quantitativo, tendo-se utilizado a análise documental, o sistema de Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) e o inquérito por entrevista. Tratando-se de um estudo de caso, de forma a aumentar a fiabilidade das interpretações do investigador, optou-se por recorrer a diferentes fontes de evidência que assegurassem várias “unidades de medida” do mesmo fenómeno, criando-se condições suficientes para a triangulação dos resultados.

Para a realização da investigação foi solicitada autorização às entidades e agentes educativos envolvidos – agrupamento de escolas, educadoras de infância, professora de educação especial e família – aos quais foi assegurado confidencialidade e anonimato.

Relativamente aos procedimentos de abordagem qualitativa, elaboraram-se guiões para as entrevistas e foram analisadas a partir de uma análise de conteúdo, tendo-se identificado os conceitos significativos relacionados com os objetivos da investigação. Quanto aos procedimentos da abordagem quantitativa, selecionaram-se os domínios das componentes da CIF (funções do corpo) e da CIF-CJ (atividades e participação e fatores ambientais) atendendo aos objetivos delineados para a investigação e à análise documental do processo individual do aluno. No âmbito da componente funções do corpo, foi avaliado o domínio das funções mentais; na componente atividades e participação, avaliaram-se os domínios da aprendizagem e aplicação de conhecimentos, tarefas e exigências gerais, comunicação, mobilidade, autocuidados, interações e relacionamentos interpessoais e áreas principais da vida; relativamente à componente fatores ambientais, avaliaram-se os domínios apoios e relacionamentos, atitudes e serviços, sistemas e políticas.

A CIF enquanto ferramenta de investigação, permite medir resultados que podem ser registados através da seleção do código ou códigos apropriados da categoria e do acréscimo de qualificadores, códigos numéricos que especificam a extensão ou magnitude da funcionalidade ou da incapacidade naquela categoria, ou em que medida um fator ambiental constitui um facilitador ou um obstáculo, sendo a componente dos fatores ambientais expressa em termos positivos e negativos. Aplicada em três momentos da investigação, os resultados foram tratados pelo programa informático Excel 2007 que permitiu a elaboração de tabelas e quadros de frequência, e por sua vez, a construção dos gráficos.

Procede-se à apresentação e discussão dos resultados alcançados, refletindo-se sobre a influência dos sistemas do Modelo Ecológico do Desenvolvimento Humano de Bronfrenbrenner nos objetivos da investigação.

O Gráfico 1 apresenta o resultado médio global dos domínios já enunciados para a componente Funções do Corpo, denunciando evolução entre a segunda e terceira avaliação.

Gráfico 1. Funções do Corpo – Resultado médio global

O gráfico 1 apresenta o resultado médio global (cotado entre 0 e 4, em consonância com a CIF) da componente Funções do Corpo, onde se percebe a diminuição do grau de deficiência entre o segundo momento (2,75) e o terceiro momento (2.25) da intervenção.

As funções mentais globais, constituídas pelas funções intelectuais e funções psicossociais mantiveram-se classificadas com deficiência moderada e grave, respetivamente, ao longo de toda a intervenção. Estas funções abrangem um grande espectro de competências que estão condicionadas à transversalidade das práticas de IP, e, neste caso, embora a transversalidade se tenha notado nas relações dos profissionais envolvidos, não esteve nas relações destes com a família, que não aplicou nas rotinas de casa as práticas e estratégias planeadas, estando assim comprometida a qualidade das interações do mesossistema, isto é, das relações que se estabelecem entre a escola e a família, e da qualidade das interações do microssistema, entre a família e a criança, por não beneficiar das rotinas de casa enquanto oportunidade de desenvolvimento. Ressalvam-se as interações da criança com os profissionais (contexto secundário do microssistema). Bruder (2000) refere que o desenvolvimento das funções intelectuais e psicossociais depende de todos os contextos da vida do indivíduo e por isso está condicionado à transversalidade das práticas em IP.

Ainda no domínio das funções do corpo, o grau de deficiência das funções mentais específicas, ao nível das funções da atenção e da linguagem (receção e expressão) constituem categorias cujo desempenho melhorou ao longo da intervenção, alterando o grau de deficiência grave para grau moderado. Grande parte dos défices da linguagem são detetados no JI, principalmente quando são ligeiros (Ramey & Ramey, 1998). Contudo, neste caso, os défices exibidos eram elevados, pelo que a sua deteção ocorreu numa consulta de medicina familiar que veio a impulsionar a frequência da criança num programa pré-escolar, aos 4 anos de idade. Relativamente às funções mentais específicas, as práticas de intervenção precoce implementadas revelaram-se frutíferas e que a criança beneficiou das interações do mesossistema (médico) com o exossistema (sistema político relativo à escola, neste caso constituído pelo programa pré-escolar).

Ao nível da componente Atividades e Participação, nomeadamente nas categorias da aprendizagem e aplicação de conhecimentos, tarefas e exigências gerais, comunicação, mobilidade, autocuidados, interações e relacionamentos interpessoais e áreas principais da vida, o grau de dificuldade de desempenho diminuiu muito significativamente ao longo da intervenção, como revelam os resultados das três avaliações realizadas durante esse período e a análise de conteúdo das entrevistas realizadas às educadoras de infância e à professora de educação especial.

Observou-se progressos evidentes na categoria da aprendizagem e aplicação de conhecimentos, dado que na avaliação final, a capacidade de manipular objetos, aquisição de conceitos, aquisição de competências, concentrar a atenção e dirigir a atenção foram classificadas com grau de dificuldade moderado, quando haviam sido pontuadas com grau grave ou mesmo grau completo (no caso da aquisição de conceitos) na primeira avaliação realizada. Ao nível das tarefas e exigências gerais a dificuldade em levar a cabo uma única tarefa diminuiu do grau moderado para o grau ligeiro.

Na comunicação, a criança teve progressos na compreensão de mensagens simples, tendo atingido o grau de dificuldade ligeiro na avaliação intermédia e terminado sem dificuldade; na compreensão de mensagens complexas, a criança teve a classificação de grau de dificuldade moderado na última avaliação e partiu com a classificação de grau grave, registando-se uma significativa evolução.

No que concerne à mobilidade, a utilização de movimentos finos da mão evoluiu de um grau de dificuldade grave para moderado e na utilização da mão e do braço, de moderado para ligeiro.

Na categoria dos autocuidados a evolução é muito positiva, com três áreas inicialmente classificadas com grau de dificuldade grave a evoluírem para grau de dificuldade ligeiro (lavar as partes do corpo, secar-se e despir a roupa). Os processos de excreção e a capacidade para beber também findaram a avaliação com grau ligeiro, embora tenham sido inicialmente classificados com grau de dificuldade moderado. Já vestir a roupa, calçar-se e comer evoluíram de grau de dificuldade grave para moderado.

Nas interações e relacionamentos interpessoais foi observada uma diminuição do grau de dificuldade grave para moderado.

Quanto às áreas principais da vida, o envolvimento no jogo evoluiu do grau de dificuldade grave para moderado e a frequência num programa de educação pré-escolar, que surgiu na avaliação intermédia, foi classificada com grau de dificuldade grave e terminou com grau de dificuldade moderado.

O Gráfico 2 apresenta o resultado médio global da componente Atividades e Participação, que engloba os resultados de todos os domínios e categorias supracitadas, ao longo dos dois anos de intervenção.

Gráfico 2. Atividades e Participação – Resultado médio global

inc2

A evolução notável das competências associadas à componente das atividades e participação da criança pode estar relacionada com a possibilidade de as introduzir nas rotinas do JI, espaço essencial para o desenvolvimento da criança, tendo assim beneficiado das interações com o contexto secundário do microssistema, e também pelo facto de existir boa articulação entre os profissionais, como se virá a descrever ao nível dos fatores ambientais. Esta articulação é fundamental para que o fluxo de competências flua por todos os intervenientes no processo educativo, potenciando as possibilidades de aprendizagem da criança (McWilliam, 2003a). Neste caso, a criança beneficiou da transdisciplinaridade dos profissionais, isto é, das interações desenvolvidas ao nível do mesossistema, entre a educadora de infância, a professora de educação especial e as terapeutas. Além disso, o JI é um espaço de aquisição de competências por excelência, para crianças até aos 6 anos de idade, que tem como vantagens a integração das aquisições nas rotinas das crianças, a assertividade dos elementos significativos (os profissionais da educação têm formação e competências que lhes permitem educar de forma assertiva, o que faz com que muitas vezes problemas comportamentais exibidos em casa não se manifestem no JI, uma vez que as crianças reagem aos contextos), o contacto com pares, etc. Particularmente para as crianças com atraso global de desenvolvimento, a frequência de um programa pré-escolar é muitas vezes prescrita pelos médicos, como estratégia para promover o desenvolvimento, potenciar as capacidades, utilizando as áreas fortes como âncora para trabalhar as fracas (Blackman, 2002).

Ao nível dos fatores ambientais, houve categorias, como os profissionais da saúde, as pessoas em posição de autoridade, os serviços da segurança social e os serviços da saúde, que constituíram um contributo positivo muito relevante para a promoção do desenvolvimento global da criança e das competências parentais e autonomia da família, como revela o Gráfico 3, com as colunas azuis a revelarem um facilitador de grau três, durante toda a intervenção.

Gráfico 3. Fatores Ambientais – Resultado médio global
inc3

Estes resultados parecem suportar a ideia de que a intervenção planeada teve resultados significativos no desenvolvimento global da criança e estão de acordo com o que diz a literatura, na medida em que a implementação de um programa de intervenção precoce é a melhor estratégia a adotar para crianças com atraso global do desenvolvimento (Anderson et al., 2003). De acordo com o Modelo Ecológico do Desenvolvimento Humano, um programa de intervenção precoce pode situar-se ao nível do exossistema, já os modelos teóricos subjacentes a esse programa, constituem o macrossistema. Neste caso, a criança parece ter beneficiado das interações com estes contextos.

Por outro lado, a análise dos resultados às atitudes e apoios da categoria família próxima, retratada nas colunas cor-de-rosa no Gráfico 3, revelou que esta constitui uma barreira de grau três (grave) à fomentação de oportunidades de aprendizagem para a criança. A corroborar estes dados, a análise de conteúdo às entrevistas realizadas à educadora de infância e à professora de educação especial, denuncia que a família próxima constituiu um grave impedimento para a promoção do desenvolvimento global da criança e das suas próprias competências parentais e autonomia, sendo que as interações entre a criança e a família, o contexto primário do microssistema, prejudicam o desenvolvimento das características pessoais da criança. Mesmo sendo a única barreira, a família próxima constitui também o fator mais importante e relevante na promoção dos objetivos delineados para a criança e para a família. Nesta categoria os resultados permaneceram inalterados ao longo das três avaliações, constituindo uma barreira de grau grave. A família é a principal fonte de desenvolvimento para qualquer criança. Quando esta, ao invés de facilitar, constitui uma barreira para o desenvolvimento da criança, esta está em situação de risco, principalmente quando se trata de um caso de uma criança com NEE (Carrapatoso, 2003).

Os resultados da análise de conteúdo das entrevistas realizadas à família e os resultados da análise da CIF corroboram-se mutuamente. Na análise à entrevista inicial realizada à mãe, há referência às dificuldades da criança ao nível da compreensão, execução, autonomia ou autocuidado, sem haver referência a qualquer elemento positivo acerca da criança. Além disso, são mencionadas alterações de comportamento da criança (e.g. agressividade), o que pode resultar da interação entre uma dificuldade de regulação emocional por parte da criança e dificuldade na assertividade das práticas educativas do seu ambiente familiar. Grande parte dos problemas de regulação emocional que têm como sintomas principais alterações de comportamento têm como origem défices de assertividade nas práticas educativas e alterações de resposta da criança aos contextos, variando de acordo com as figuras de autoridade (Ramey & Ramey, 1998; Blackman, 2002). Neste sentido, na segunda entrevista, a opinião da mãe e das profissionais de educação relativamente ao comportamento da criança é distinta, dado que a primeira refere que a criança continua a ter comportamentos agressivos e a bater-lhe e as últimas referem que o C reconhece a autoridade dos profissionais, não revelando agressividade. Mais uma vez as interações estabelecidas entre a criança e a família (contexto primário do microssistema) e entre a criança e os profissionais (contexto secundário do microssistema) têm resultados diferentes no seu comportamento e por consequência no desenvolvimento das suas características.

Para McLoyd (1998), as famílias com nível socioeconómico desfavorecido têm maior tendência em valorizar os aspetos biológicos da criança com NEE, em detrimento da influência dos aspetos ambientais, perante os profissionais que as acompanham, nomeadamente das instituições de apoio à infância e juventude, comissões de proteção ou tribunais. A razão para tal prende-se com a necessidade de evidenciar as componentes genéticas ou de base, para evitar serem consideradas negligentes, quando a evolução da criança não corresponde ao esperado (Guralnick, 1998). Neste caso, a família da criança em estudo, foi negligente, na medida em que não se envolveu nas atividades realizadas no JI – manifestando-se mais uma vez lacunas na articulação de agentes do mesossistema, isto é, entre o JI e a família – e que não cumpriu as resoluções acordadas no que se refere a medidas ao nível do exossistema, como a frequência de programas de formação parental ou de consultas médicas para a redução do consumo do álcool e tabaco. Neste sentido, a família constituiu-se como uma barreira grave ao desenvolvimento da criança e à aquisição de competências parentais e de autonomia.

Ao nível do macrossistema, a filosofia das equipas locais de intervenção precoce pressupõe uma intervenção de cariz transdisciplinar, em que a família é o centro de toda a ação e é um elemento importante da equipa (DL 281/2009). Em cada intervenção, cada profissional “transporta” os saberes da equipa e procura habilitar o meio em que a criança está inserida para maximizar as oportunidades do seu desenvolvimento. Existe assim uma descentralização do saber, que flui pelos pais, educadores, profissionais da saúde, entre outros intervenientes. Ao adotar-se a transversalidade das práticas, todos os intervenientes passam a agir de forma similar, o que maximiza as oportunidades do desenvolvimento da criança, que necessita de aprender enquanto brinca e nas suas rotinas diárias, nas escolares e nas de casa (McWilliam, 2003a).

No caso desta família, o facto de não implementar em casa as estratégias usadas no JI e nas terapias, impediu que as rotinas em casa fossem aproveitadas enquanto oportunidades de desenvolvimento. Na segunda entrevista realizada à mãe, está patente a resistência de dar continuidade às práticas implementadas nas rotinas do JI, nas rotinas em casa, imputando a responsabilidade do desenvolvimento do seu filho nos profissionais de educação. Esta situação denuncia a dificuldade de compreensão da família sobre os seus deveres enquanto principal agente educativo da criança e por consequência a ausência ou precariedade de interações com a criança, ao nível do contexto primário do microssistema, promotoras de oportunidades de aprendizagem e de desenvolvimento das suas capacidades.

O processo de comunicação entre os profissionais da equipa de IP e a família é a chave para o processo de IP. A família precisa de sentir que é ouvida de forma ativa, que são reconhecidos os seus valores e a sua cultura e que a comunicação é aberta e honesta. Contudo, ainda assim, por vezes, é difícil fazer com que a família acredite na mais-valia das práticas de IP implementadas enquanto instrumento eficaz para o desenvolvimento da criança e da família, pois existem outras preocupações que se podem sobrepor a essas, como por exemplo, a habitação, os rendimentos, etc. (Guralnick, 1998). Neste sentido, também na segunda entrevista realizada à mãe, há o reconhecimento da evolução da criança em relação a algumas áreas do desenvolvimento mas prioriza a necessidade de receber mais dinheiro e de mudar de casa.

A análise aos resultados da CIF e a análise de conteúdo das entrevistas realizadas à família e às profissionais de educação, permitem concluir que, apesar da intervenção ter sido ajustada às necessidades e recursos da família, as competências parentais e autonomia da família não foram especialmente reforçadas. A participação da família no JI foi fraca e foram evidentes as resistências existentes a este facto, o que pode ter constituído uma barreira para a criação de oportunidades para o desenvolvimento das capacidades da criança.

Da análise das entrevistas realizadas a estas profissionais ressalva-se o facto de a intervenção ter sido adequada às necessidades da criança, bem como a importância da articulação entre as profissionais, uma vez que o know-how é transportado pelos intervenientes que acompanham o processo educativo da criança. Isto permite integrar o conhecimento e as práticas nas rotinas da criança, potenciando vários momentos de aprendizagem (Bruder, 2000). Ambas as profissionais de educação concordam que caso a família se tivesse envolvido mais no processo, a criança poderia ter evoluído ainda mais favoravelmente, apontando esta como a grande lacuna existente no seu desenvolvimento. De facto, muitas vezes os pais não se sentem com condições de proporcionar a continuidade das práticas de intervenção precoce em casa, devido a insegurança, frustração pelo facto da criança ter um comportamento mais adequado com os técnicos, medo de falhar, etc. (Mahoney & Bella, 1998).

Neste caso em particular parece claro que o desenvolvimento da criança foi mais potenciado por agentes do contexto secundário do microssistema, nomeadamente pela educadora de infância e pela professora de educação especial, no ambiente do JI, e não tanto por agentes do contexto primário do microssistema, constituído pela família próxima. Relativamente à promoção de competências parentais e a autonomia da família, não se verificou a eficácia destes objetivos na análise de dados realizada.

  1. Conclusões

Quando se estuda um “caso” procura-se compreender os múltiplos fatores da sua realidade, intransferível para outros casos. Ainda assim, as conclusões de um estudo, seja sobre um indivíduo ou sobre uma população, permitem sempre ampliar o conhecimento sobre o objeto em análise, neste caso constituído pelas práticas de intervenção precoce. Sabendo-se que quanto mais credíveis fossem as conclusões do estudo, maior seria o seu contributo para as reflexões sobre as políticas e práticas de intervenção precoce, recorreu-se uma simbiose inter-metodológica de cariz quantitativo e qualitativo, criando-se condições para uma triangulação de análise dos dados que aumentasse a fiabilidade das interpretações do investigador.

Os dados recolhidos da análise de conteúdo das entrevistas considera apenas a perceção da família (mãe) e de três profissionais da educação (duas educadoras de infância e uma professora de educação especial), não incluindo declarações diretas de outros técnicos relevantes no processo (e.g. assistente social), que seriam importantes para perceber se coincidiam com as convicções das profissionais entrevistadas. Sem dúvida que a existência desses dados, possibilitaria uma triangulação de análise e de discussão de dados mais completa e ainda mais fiável. No entanto, mesmo não havendo autorização para recolher a opinião de outros técnicos, ao aplicar-se a CIF, teve-se em conta toda a informação presente no processo do aluno, contemplando assim, mesmo que indiretamente, a avaliação técnica desses profissionais, nos qualificadores desse sistema de classificação. Ainda sobre este eixo de ponderação é relevante acrescentar que no âmbito da IP e do PIIP delineado, os agentes educativos entrevistados (família, educadoras de infância e professora de educação especial) são os que mais se inter-relacionam, desenvolvendo a cultura de transdisciplinaridade e a transversalidade das práticas, e que, de forma direta, estabelecem com a criança interações que se repercutem como barreira ou promotor do desenvolvimento das suas capacidades.

De forma a conseguir avaliar-se os efeitos das práticas de IP planeadas para os objetivos delineados – promoção do desenvolvimento global da criança e de competências parentais e autonomia da família – a investigação decorreu até ao fim do período da intervenção, que culminou com o caso a passar para a alçada da Equipa Multidisciplinar de Apoio aos Tribunais e com a institucionalização da criança, tendo sido interrompida a intervenção centrada na família.

Neste estudo, através da análise documental do processo individual do aluno, da análise de conteúdo das entrevistas e da análise dos resultados da CIF, concluiu-se que as interações desenvolvidas entre a criança e a família – dimensão primordial do microssistema – não potenciaram possíveis situações de aprendizagem para a criança, e que não houve transversalidade das práticas iniciadas em contexto de JI nas rotinas de casa, denunciando interações frágeis ao nível do mesossistema. Dunst e os seus colaboradores referem que as experiências ambientais providenciadas às crianças, independentemente de serem ou não manipuladas, funcionam como uma forma de intervenção precoce que promovem o seu desenvolvimento e a normalização (Dunst et al., 2001).

Para se conseguir avaliar a influência dos contextos como fatores decisivos no desenvolvimento da criança, foi essencial recorrer-se à CIF enquanto ferramenta de investigação “para medir resultados, a qualidade de vida ou os fatores ambientais” (OMS, 2004, p. 9). Baseada num modelo biopsicossocial a CIF permitiu medir a influência dos fatores ambientais sobre as funções do corpo e atividades e participação (Lollar & Simeonsson, 2005). Na análise realizada aos dados obtidos nas três avaliações da CIF, na componente dos fatores ambientais, a categoria da família próxima, é aquela que apresenta os valores mais baixos e sempre negativos, ao nível do apoio e das atitudes, formando uma barreira para a criação de oportunidades para o desenvolvimento das capacidades da criança. Neste sentido, Lollar e Simeonsson referem que a incapacidade não é um atributo da pessoa mas de um grande conjunto de condições, muitas delas, criadas pelo contexto, surgindo esta como uma experiência natural da vida (Lollar & Simeonsson, 2005). As pessoas em posição de autoridade e os profissionais da saúde constituem as categorias mais valorizadas no domínio do apoio e das atitudes, tendo constituído um facilitador substancial para a criação de oportunidades de aprendizagem da criança, que teve uma evolução notável em várias áreas do desenvolvimento.

Segundo todos os intervenientes entrevistados – educadoras de infância, professora de educação especial e mãe – o grau de envolvimento da família, na tomada de decisão sobre a criança, é positivo, nomeadamente na elaboração e momentos de avaliação do PIIP e do PEI. No entanto, durante a intervenção, não há sequência das decisões tomadas e nas quais participaram, por parte da família, no trabalho que é necessário desenvolver todos os dias com a criança e com a própria família ao nível da criação e potencialização de competências parentais. A mãe, embora reconheça as vantagens da intervenção no desenvolvimento da criança, continua a priorizar as necessidades da família. Baseados na Hierarquia das Necessidades de Maslow, McWilliam, Winton e Crais (2003) referem que se a família não vir as suas necessidades básicas satisfeitas (e.g. comida na mesa, um lar seguro e aconchegante), não tem predisposição para participar de forma intencional e ativa nas práticas de intervenção direcionadas para a criança.

De acordo com a triangulação dos resultados, verificou-se que houve sucesso nas práticas de intervenção precoce implementadas pelos profissionais para a promoção do desenvolvimento global da criança e insucesso no trabalho desenvolvido com a família para a sua capacitação. Aferiu-se que não houve potencialização de oportunidades de aprendizagem da criança, por parte da família, cujo apoio e atitudes se repercutiram numa barreira para o desenvolvimento das capacidades cognitivas, sociais e emocionais da criança. Também se verificou ausência da transversalidade das práticas entre os profissionais e a família e envolvimento deficitário da família no processo educativo da criança, situações que acusam o fracasso da promoção das competências parentais e da autonomia da família.

Tecidas as considerações sobre as potencialidades, as limitações e os resultados deste estudo de caso, pretende-se que esta investigação possa gerar maior reflexão sobre a importância da transdisciplinaridade entre os profissionais e a transversalidade das práticas de intervenção precoce nos vários contextos naturais da criança. Além da implementação das práticas em contexto de JI é fundamental inclui-las nas rotinas de própria família, para que as experiências de aprendizagem da criança sejam mediatizadas pelo contexto familiar e com isso, se gere oportunidades para a potencialização das competências parentais e a autonomia da família. Estes objetivos conseguir-se-ão alcançar tanto quanto melhor for a relação entre os profissionais e a família e quanto mais esta se sentir capaz por tomar decisões importantes sobre si e o seu filho, colocando em si a responsabilidade sobre os resultados obtidos. Neste estudo a Educadora de Infância e a Professora de Educação Especial reconheceram a importância da implementação das práticas em contexto de JI e nos restantes contextos naturais da criança e apontam a família como uma barreira para a intervenção se realizar nas restantes rotinas da vida da criança. Tendo em conta a importância da transdisciplinaridade e da transversalidade das práticas de IP, refere-se a necessidade de se introduzir nos planos de estudo superiores de Educação de Infância e de Educação Especial, disciplinas direcionadas para o trabalho a desenvolver com as famílias e com os restantes elementos das equipas de IP.

Quando os pais se auto-perspetivarem como os responsáveis máximos pelo desenvolvimento da criança e pela sua própria autonomia, envolvendo-se ativamente no processo educativo do filho e nas medidas planeadas para capacitar (enabling) e fortalecer (empowering) a família, sem que isso seja imposto pelas figuras do processo em posição de autoridade, o objetivo máximo da Intervenção Precoce terá sido alcançado.

Neste estudo de caso, pôde concluir-se que quando é exigido à família o seu envolvimento ativo – sem que isso seja fruto da sua vontade – o êxito da intervenção começa a estar comprometido.

Dada a delimitação deste estudo, considera-se pertinente a realização de um estudo quantitativo, que explore as práticas de intervenção precoce implementadas numa amostra de crianças com uma determinada perturbação do desenvolvimento e que inclua uma análise do plano e da ação de todos os intervenientes do processo, renovando o melhor possível, as políticas e as práticas de IP, e dessa forma contribuir para uma intervenção holística altamente qualificada. 

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[1]   Na década de 80, Garmezy (1991), a partir de estudos realizados com crianças, mostrou que os fatores de risco ambiental aumentavam a probabilidade da criança desenvolver uma desordem emocional ou comportamental, principalmente se já tivesse atributos biológicos e/ou genéticos comprometidos. Em 1993, Eisenstein e Sousa, a partir dos resultados das suas pesquisas, definem risco como “variáveis ambientais ou contextuais“ que aumentam a probabilidade da ocorrência de algum efeito indesejável no desenvolvimento mental (Eisenstein & Sousa, 1993).