caixa de ovo com ovos representando as letras do braille formando a palavra amor.
Caixas de ovos com ovos representando as letras em Braille formando a palavra amor.

Observação: A autora do relato apresentado a seguir é Simone da Costa Lima, professora de inglês da rede pública municipal e professora de Informática Educativa do Colégio Pedro II[1], da cidade do Rio de Janeiro.

Foi ela quem deu o título: “Todo professor é sempre um aprendiz”.

A fonte foi um e-mail que ela enviou para a Rede SACI; tínhamos um Observatório da Educação Inclusiva, criado em 2001 ou 2002.

Ela relata como foi receber uma aluna com deficiência visual em sua sala. Isso aconteceu em 2002[2], quando a Inclusão dava seus primeiros passos e antes da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de leis como a Lei Brasileira de Inclusão de Pessoas com Deficiência e sem todos os recursos didáticos e de Tecnologia Assistiva que temos hoje.

Mesmo assim… a Inclusão foi possível!

A seguir, o texto da professora Simone, que considero muito rico. Tomei a liberdade de atualizar a nomenclatura.

Marta Gil, Instituto Amankay

Todo professor é sempre um aprendiz

O grupo de professores da escola municipal onde trabalho foi comunicado, em outubro de 2002, que receberia no ano seguinte uma aluna com deficiência visual.

A princípio houve muitos protestos, inclusive da minha parte. As perguntas eram muitas: Vão jogar a garota aqui e pronto? Os cegos não têm que estudar no Instituto Benjamin Constant[3]? Por que ela virá para nossa escola? Quem vai nos capacitar? Quem vai me ensinar a dar aula pra cego? E o material didático? Ela vai receber os livros em Braille? Eu vou ter que aprender Braille? Eu sou obrigado a dar aula pra ela? Posso escolher outra turma?

O problema maior foi que, na hora da reunião, quando recebemos esta informação, não havia ninguém para responder as perguntas.

O tempo foi passando, as angústias aumentando, as perguntas continuavam sem respostas. Muitas estão sem resposta até hoje. Diziam-nos para ter calma porque, quando a aluna chegasse, as coisas iriam se esclarecer, teríamos o apoio necessário. Com o tempo, percebemos que o apoio e a orientação pedagógica não chegariam sem que nós fôssemos buscá-los e, principalmente, estivéssemos abertos a recebê-los. Só com o tempo percebemos também que ninguém tinha as “respostas”, simplesmente porque teríamos que buscá-las dentro de nós mesmos.

Dizer pra uma pessoa ansiosa como eu que teria que esperar até o ano seguinte para saber o que fazer era demais. Comecei, então a buscar informações na Internet. Descobri o site do Instituto Benjamin Constant (IBC).

Fiz o download da fonte Braille Kiama[4], o que me permitiu conhecer o alfabeto Braille. A fonte fica disponibilizada como uma fonte qualquer e, ao ser acionada, permite a visualização dos caracteres em Braille durante a digitação. Depois, eu imprimia, colocava do avesso em cima de um emborrachado e furava os pontos com a ponta de uma caneta fina.

Preparei um pequeno diálogo de apresentação para o primeiro dia de aula da Lindinha (nome fictício). No dia, enquanto ela lia (acompanhando o que eu falava) e ria, eu me segurava para não chorar. Perguntei: “Dá pra entender?” Ela respondeu: “Está pequeno (se referindo ao tamanho da letra), mas dá.” Perguntei: Os sinais de pontuação são diferentes? Não tem letra maiúscula?”

Depois descobri que teria que aumentar o tamanho da fonte para 30; também descobri as teclas corretas para os sinais de pontuação e letra maiúscula, pois havia ficado tudo errado. Ela comentou ainda: “É a primeira vez que alguém, sem ser a tia Rosinha (se referindo à professora que a alfabetizou) escreve algo em Braille pra mim. Nem minha mãe sabe. A senhora vai poder corrigir meus trabalhos?” Fiquei sem responder. Como explicar pra ela que eu não sabia Braille, que o computador tinha feito tudo pra mim?

A partir do site do IBC descobri também que poderíamos solicitar material didático para a Lindinha. A diretora fez um ofício e depois alguém foi buscar. Nesse meio tempo, recebemos a visita de pessoas do Instituto Helena Antipoff (IHA) [5]. Confesso que até então desconhecia a existência e função do Instituto. Participei de algumas reuniões no Instituto e as coisas começaram a se esclarecer.

Uma delas foi de suma importância: uma professora de outra escola municipal nos contou sobre sua experiência com alunos com deficiência visual e nos apresentou muitos materiais adaptados. Lembro-me até hoje do “Ovo BRAILLE”, que era uma embalagem de ovos cortada ao meio, sem tampa. Com esta embalagem cortada e seis tampinhas de refrigerante, nos ensinou como alfabetizava as crianças. Um dia, levei as tais caixas e as tampinhas para a sala. Achei que era importante que os alunos da turma compreendessem como o Braille funcionava. Lindinha adorou. Todos queriam aprender com ela.

Muitas das informações que recebia nas reuniões passava para os colegas. Muita coisa a gente inventava. Me lembro da professora de Geografia querendo explicar fuso horário. Montei uma tabela no Excel, dividida em 24 colunas, representando os fusos. Colei tiras de contact[6] transparente nas colunas, de forma alternada.

Escrevi o nome de algumas cidades em Braille. Passei exercícios orais e Lindinha conseguia resolvê-los, com a ajuda da tabela. Depois, a tabela acabou sendo usada por outros alunos da turma, sem deficiência, que não conseguiam fazer os exercícios de fuso horário da forma tradicional.

No primeiro ano, Lindinha ficou em uma turma com 28 alunos. Na turma havia muitos alunos com baixo nível de letramento, oriundos de classes de aceleração de outras escolas. Lindinha acabou sendo o destaque da turma.

Depois percebemos que tinha sido um erro colocá-la naquela turma. O tempo que parávamos para ditar e soletrar coisas para ela fazia falta, pois os demais alunos precisavam de um atendimento individualizado até mais do que ela. Alguns professores sugeriram que, para o ano seguinte, ela fosse para uma turma com melhor aproveitamento.

Em 2004, Lindinha foi matriculada em outra turma, dessa vez com melhor aproveitamento. A turma a recebeu muito bem desde o início, com o único problema de quererem fazer tudo pra ela. Eles tinham que perceber que ela tinha uma deficiência, e não era incapaz. A turma era muito barulhenta e muitas vezes eu tinha que dizer: “Vocês não perceberam que tem uma aluna com deficiência visual na sala? Ela precisa me ouvir. Vocês estão vendo o quadro. Ela não”.

Não há nada mais constrangedor do que ficar toda hora falando para a turma que há um colega com deficiência visual na sala com ele presente, mas muitas vezes isto foi necessário.

Disponibilizei na sala um cartaz com o alfabeto Braille e muitos aprenderam com facilidade. Agora Lindinha podia passar bilhetinhos que os outros conseguiam ler. Ela inclusive ensinou algumas colegas a escrever com a máquina Perkins[7], máquina própria para datilografar Braille.

Com o tempo, meus textos de inglês foram ficando grandes e não dava mais pra ficar furando todas as letras. Surgiu, então, a ideia de começar a gravar os textos em áudio. Isso facilitava, pois oferecia certa autonomia à Lindinha, principalmente durante as avaliações. Ela trazia o fone de ouvido e transcrevia para o Braille à medida que ouvia a fita.

O problema era para corrigir depois. Ter que ler em Braille, usando os olhos é bem complicado. Demorava, pois tinha que comparar cada caractere com a tabela que eu tinha. Alguns alunos da turma já liam bem melhor do que eu. Às vezes eu mandava por ela as avaliações para a professora da Sala de Recursos [8]para que fossem transcritas, mas nem sempre isso era possível. Surgiu, então, a ideia de incluir Lindinha digitalmente. O problema foi que não tínhamos laboratório de informática, nem nenhum computador disponível…

Em julho de 2004, fiz o download do software DOSVOX [9]para o computador da minha casa pra descobrir como ele funcionava. Veio outro problema: Como ensinar uma cega a digitar corretamente, se eu mesma “catava milho”? Perguntei ao meu marido as posições corretas dos dedos nas teclas. Arrumei um teclado velho, que não funcionava. Lindinha fez em Braille algumas letras com contact transparente com a máquina Perkins e colamos nas teclas. Ela levava aquele teclado pra casa e toda semana tinha que me mostrar que já dominava um exercício de digitação. Prometi a ela que, quando já estivesse dominando o uso do teclado, eu a ensinaria a usar o computador.

Ela dominou o teclado mais cedo do que poderia supor. Tinha que cumprir a promessa. Convenci a minha diretora a permitir a instalação do DOS VOX em um computador da secretaria da escola.

Comecei a dar aula pra ela nos meus tempos de complementação uma vez por semana. O som era horrível, mas ela achava tudo ótimo.

Fui ao Núcleo de Computação Eletrônica – NCE da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ[10] conversar com o professor Antônio Borges, responsável pelo desenvolvimento do programa. Consegui alguns sintetizadores de voz. Agora o computador já lia em inglês, francês, espanhol, voz de homem, mulher e criança; era só configurar.

No Natal de 2004, Lindinha ganhou o computador dela e as coisas foram ficando mais fáceis. Fui à casa dela instalar o programa. Lembro até hoje da alegria dela ao escrever uma carta para um tio, agradecendo o computador. Estou devendo outra visita a ela, pois agora ela já tem linha telefônica em casa e quer acessar a Internet[11].

As professoras de História, Português, Geografia e Ciências já utilizam material em disquete pra ela. A maior dificuldade é matemática, pois os caracteres são diferentes.

Dizer que a inclusão de Lindinha à escola foi fácil é mentira.. Foi muito difícil. Cheia de erros e alguns acertos. Diria que muitas vezes ela foi cobaia das nossas experiências. Mais difícil ainda foi a nossa inclusão a ela. Até hoje há pessoas que se sentem tão incomodadas com a presença dela na sala que simplesmente a ignoram. Não querer enxergar a deficiência do outro, mesmo sendo tão clara, muitas vezes demonstra a nossa dificuldade de enxergar as nossas próprias deficiências.

Ao longo de todo este trabalho, muitas vezes foi a própria Lindinha que nos mostrou o caminho, o como fazer. Com certeza, a inclusão dela não teria ocorrido se, além da deficiência visual, ela também apresentasse outros tipos de deficiência.

No ano seguinte, Lindinha acabou ficando em uma turma com 48 alunos, o que dificultou muito o trabalho. Passou por problemas de saúde que muitas vezes a impediam de ir à escola. Às vezes nos comunicávamos por e-mail.

Por falar nisso, acabei não indo a casa dela configurar a conexão com a Internet. Ela se virou sozinha. Telefonou para alguém do NCE (projeto DosVox) e obteve as informações necessárias.

No final de 2006, Lindinha concluiu o Ensino Fundamental, prestou concurso para uma escola técnica estadual para cursar “Processamento de dados” e foi aprovada. Por dificuldades de locomoção, Lindinha resolveu fazer o Ensino Médio na modalidade à distância e apenas o curso técnico de forma presencial. Segundo informações do último e-mail, enviado por ela em 07 de novembro de 2008, seu aproveitamento tem sido muito bom.

No início de 2008, recebemos outra aluna com deficiência visual total: Mari. Ela  é tão inteligente quanto Lindinha e já é incluída digitalmente. Usa um laptop em sala de aula (sem acesso à Internet). Textos e exercícios são enviados e corrigidos por e-mail ou disponibilizados em pen drives ou disquetes.

A maioria dos professores usa as Tecnologias de Informação e Comunicação -TIC para trabalhar com Mari. Com certeza, nossa experiência com Lindinha “deixou as coisas mais fáceis” para o trabalho com ela. Por coincidência ou não, voltei a estudar depois de conhecer Lindinha. Fiz especialização em Informática Educativa (concluída em 2005) e mestrado em Linguística Aplicada (concluído em 2008). A história acima retrata o olhar retrospectivo de uma professora e (hoje) pesquisadora, certa de que tudo teria sido mais fácil se o grupo de professores tivesse sido previamente capacitado para o trabalho com a aluna com deficiência visual

Na ausência de uma formação em serviço, busquei pessoalmente atualizar minha formação profissional.

[1] O Colégio Pedro II é uma tradicional instituição de ensino público federal, localizado no Estado do Rio de Janeiro. É o terceiro mais antigo dentre os colégios em atividade no país, depois do Ginásio Pernambucano e do Atheneu Norte-Riograndense. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Col%C3%A9gio_Pedro_II

[2] Fonte: E-mail enviado para o Observatório de Educação da Rede SACI/USP. Infelizmente o site da Rede SACI foi desativado em 2010.

[3] O Instituto Benjamin Constant foi fundado em 1854 na cidade do Rio de Janeiro, pelo imperador D. Pedro II. Foi a primeira escola, no Brasil, para crianças cegas e com baixa visão. http://www.ibc.gov.br

[4] http://www.fontesgratis.com.br/b/BrailleKiama.php

[5] O Instituto Municipal Helena Antipoff é o Centro de Referência em Educação Municipal da cidade do Rio de Janeiro. Atua na perspectiva da educação inclusiva, acompanhando as diretrizes e metas propostas pela Política Nacional de Educação Especial. http://www0.rio.rj.gov.br/sme/destaques/educacaoEspecialIHA.htm

[6] Contact: nome comercial de papel autoadesivo.

[7] http://www.civiam.com.br/blog/765

[8] A Sala de Recursos foi a percursora do AEE – Atendimento Educacional Especializado.

[9] http://intervox.nce.ufrj.br/dosvox/intro.htm

[10] https://pt.wikipedia.org/wiki/Dosvox

[11] Este relato é de 2002, quando o único jeito de usar a Internet era por conexão telefônica (Internet discada).