Um TV fora de sintonia

Por Lucio Carvalho, para a Inclusive.

A cada reportagem que programas de TV fazem sobre pessoas com síndrome de Down, vai se enraizando em mim um sentimento cada vez mais dúbio, duplofacetado. Uma face dele fica feliz, sente-se gratificada por exibir pessoas fazendo coisas, realizando e atuando positivamente no mundo. A outra face do sentimento é de desconforto, como se estivesse sempre diante de um freak show às avessas, mas ainda assim um freak show. E as pessoas exibindo-se (ou sendo exibidas) como exemplares incomuns da espécie humana, conquistando, vejam só, uma vida comum.

É claro que isso me ocorre porque tenho interesse direto no assunto, mas não consigo evitar o estranhamento (estranhamento não é o mesmo que rejeição total, vale dizer). Acho que isso se deve em muito ao fato de que não vejo tão frequentemente esse tipo de reportagem e exposição com outras deficiências ou minorias. Não lembro de ter visto alguma vez uma empresa só de cegos ou de pessoas com paralisia cerebral, por exemplo. De outras minorias então, muito menos. Chego a imaginar o barulho que seria feito nas redes sociais num caso destes. Mas com o pessoal trissômico, por outro lado, sempre é passada a ideia de uma iniciativa “legal” e socialmente desejável. Eu não sei. Acho estranho. Não me acostumo.

Às vezes me parece uma coisa meio compulsiva já, isso de juntar pessoas com síndrome de Down num grupo à parte e narrar sua vida como algo que “eles também conseguem fazer”, mesmo que essa ideia seja transmitida apenas subliminarmente. Parece uma coisa que as famílias têm sido acostumadas a fazer desde a tenra infância, desde a promoção de calendários só com crianças com síndrome de Down, grupos exclusivos de convívio de adolescentes e outras iniciativas que não costumam dialogar muito com o social amplo senso (nem com outras deficiências), mas, provavelmente por zelo e outras preocupações, mantêm-se relativamente estáveis e homogêneas.

Tenho algumas suspeitas de porque isso ocorre, mas seria leviano fazer generalizações a respeito disso até mesmo porque, como disse, a outra face do sentimento fica feliz, fica mesmo muito feliz porque compreendo muito bem a jornada que é a conquista das coisas diante de tantas adversidades afetivas, sociais e de toda a ordem, mesmo em se tratando de iniciativas que não costumam se repetir com a população de baixa renda e isso seja frustrante por si só. Mas é uma felicidade que me cai, não sei explicar o porquê, melancólica. Penso que se ao menos fosse cancelado esse efeito de “curiosidade” eu me sentiria melhor ou, pelo menos, o incômodo não seria tanto assim.

Para além disso, vejo tantas necessidades reais e pautas reais a tratar, que isso me parece uma coisa circense (e isso mais me irrita que entristece), como um “veja só” sem fim. Eu sugeriria, por exemplo, pautas e situações diferentes, mais igualmente muito reais. Por exemplo, a situação de desemprego das pessoas com deficiência intelectual. Também situações de violência social, familiar, etc. E como esquecer da qualidade da educação, evasão escolar e falta de indicadores sociais e controle social eficiente… Mas não. A opção mais simples parece continuar a ser a duradoura excepcionalização de qualquer coisa do que abordar a situação geral que afeta a todos e especialmente aqueles de menor alcance econômico, ainda muito dependentes de iniciativas comunitárias e assistenciais.

Enfim, quero dizer que não há que vilanizar preliminarmente a nada nem a ninguém, nem muito menos promover uma caça às bruxas, porque esse comportamento é dissociativo e contraproducente em todos os seus aspectos. Trata-se apenas de entender mais e melhor a situação das pessoas com deficiência e isso às vezes pode requerer menos “show da vida” do que encarar a dureza da vida real. Ou, para atender as duas faces da moeda, pelo um pouco das duas coisas. No mínimo, por uma questão de verossimilhança.