Balança de pesos

Por Lucio Carvalho, da Inclusive

Existe um Brasil antes e outro depois do Zika vírus e da epidemia da microcefalia, mas têm coisas por aqui que dificilmente mudam. Uma delas é tendência aparentemente inexorável ao pensamento binário, maniqueísta, de oposição sistemática. Pois é justamente quando o maniqueísmo que ronda a consciência de cada um estende suas garras em direção a um dos maiores tabus brasileiros, o possível direito ao aborto, que essa tendência mais uma vez se confirma e amplifica, como não seria difícil prever que aconteceria.

Até aí nada de novo, afinal desde as últimas eleições presidenciais viu-se que esta lógica é cada vez mais imperativa: quem não pensa como eu é meu inimigo e não é preciso aceitar de todo a opinião do outro, basta parecer tolerá-la ou então ignorá-la. Este parece ser o princípio moral que rege estes tempos de relações virtualizadas, mas basta que se avente mudar o mundo real, no caso a legislação e os direitos petrificados sobre o aborto – ou sua jurisprudência – para que a reação ora titubeante erga-se nas patas das mais profundas convicções.

Então, outra vez e agora por uma razão muito, muitíssimo séria, temos a nação novamente dividida. Só que, desta vez, opondo-se o pleito de que as mulheres tenham o direito à escolha por levar a termo gestações em situação de risco ao direito à dignidade das pessoas com deficiência. Mas será que interessa saber se esta oposição é mesmo real ou artificiosa? A que interesses pode servir a ideia de manter-se as restrições ao direito ao aborto mesmo num cenário adverso para a qual as maiores vítimas, as mulheres gestantes, sequer contribuíram para dar causa? Seja quais forem, as respostas até aqui têm sido bastante parciais e a dúvida social permanece: seria legítimo, como a própria ONU propôs, que mulheres gestantes tenham o direito a optar por fazer a interrupção e ela ser bancada pelo mesmo poder público que, por permitir a proliferação do vetor transmissor, o mosquito Aedes aegypti, favoreceu as condições para que elas fossem infectadas pelo vírus Zika, provável causador da microcefalia e outras decorrências graves, como a síndrome de Guillain-Barré?

A despeito das dúvidas imensas e dilemas morais diversos, uma certeza é tão imperativa como a inevitável disputa de ideias em torno aos temas: no embate de preconceitos de toda a espécie, é difícil quem consiga restar em pé. Seja por ser deitado ao chão por cansaço ou por ter recebido um nocaute argumentativo, o mais difícil em todo o debate travado com ideias é aceitar que a realidade do outro é sempre incomparável e que recusá-la sob qualquer pretexto pressupõe numa das principais raízes do pensamento totalitário, no qual apenas uma versão do real é legitimada enquanto todas as outras são inutilizadas, seja por artifícios discursivos quanto por argumentos improváveis e falaciosos, mas a essa altura dos debates isso é o que menos tem importado.

Por outro lado, compreender-se em que condições se desenrola a vida das pessoas com deficiência no Brasil contemporâneo, assim como compreender o contexto da emergência dos casos de microcefalia decorrente da epidemia de Zika vírus, consiste no requisito primeiro de todo o debate que se pretende respeitoso com o outro.

Claro que, caso isto não esteja no horizonte do interesse imediato do leitor, o presente texto é muito provavelmente inútil e continuá-lo daqui em diante implicará necessariamente num ato de livre autopunição, porque aqui nem por hipótese se buscará fazer a muito bem conhecida caça às bruxas a quem defende o direito à escolha, nem tampouco dar a entender que a vida com deficiência merece um comportamento à vade-retro, definição precisa que recolhi dentre os muito debates que ocorrem no mundo digital, fomentados por um temor crescente e a propagação de uma mensagem na maior parte das vezes negativa a respeito da microcefalia.

A presença indesejada

Às vezes tenho a impressão de que é muito difícil para pessoas que não têm a vivência ou nunca acompanharam de perto a vida familiar de uma pessoa com deficiência, entender a dimensão do que seja a experiência social de ter um filho assim. Diga-se de passagem que, neste “assim”, cabe um sem número de condições (entre físicas, sensoriais, intelectuais e múltiplas), além de que, é bom lembrar, nenhuma seja equiparável à outra. Porém não estou pensando nas dificuldades iniciais, de assimilação ou qualquer outro dilema da experiência individual, mas na relação da pessoa com o mundo tal como ele é, cujo marco principal via de regra é o ingresso na vida escolar.

Muitas pessoas não sabem, porque o assunto ou lhes é distante ou muito distante, mas nesse momento, no Supremo Tribunal Federal, está para ser julgada a ADI 5357, impetrada pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (CONFENEN) para sustar alguns dos efeitos da Lei Brasileira de Inclusão (LBI) que passou a vigorar no começo deste ano. O objetivo da ação é “proteger” os estabelecimentos particulares de ensino da obrigatoriedade de assegurar educação aos estudantes com deficiência, assegurada na LBI.

O que muitas pessoas sentem, percebem, interpretam ou identificam em uma ação assim, com objetivos tão claros e explícitos, é um rotundo NÃO social. Um enorme NÃO. Um NÃO sem metáforas. Um NÃO é aqui o seu lugar. Um NÃO pense que o seu filho ou filha está apto a pertencer a este mundo. Um NÃO sonoroso que pode ramificar-se em: NÃO temos vagas, NÃO temos preparo, NÃO temos recursos, NÃO temos acessibilidade, NÃO queremos saber disso aqui, NÃO temos o menor interesse em sair dessa posição, NÃO isso, NÃO aquilo. E mais uma série de NÃOS que repercutem na individualidade, ainda que de muitas formas.

É muito difícil que um pai ou mãe de uma criança com deficiência não tenha pelo menos uma história dessas para contar. Na rede privada, não faltam histórias de recusa expressa de matrícula, embora haja também as apenas insinuadas (como quando dizem “Seu filho/a seria melhor atendido/a na Conchinchina, onde têm experiência prévia, etc, etc.). Também proliferam as que dizem respeito à imposições de taxas extras (porque se não tiver alguém que faça metade das suas tarefas ele/ela apenas estorvará o tempo dos professores, etc, etc, atrapalhando os demais).

É igualmente muito difícil para muitos pais continuarem a insistir diante de tão evidente recusa. Muitas vezes é penoso e não são poucos os casos de “procissão” que ainda hoje perduram, a despeito de ocorrerem à margem da lei. No Brasil contemporâneo, não se imagina que um família tenha seu filho barrado na escola porque é negro, por exemplo, e ainda assim a sociedade identifica facilmente que vivemos num racismo que se revela velada ou escancaradamente. O preconceito contra a deficiência, entretanto, encontra amparo em instituições que são justamente aquelas que deveriam ser as primeiras a acolher as crianças e obtêm concessão do Estado para exercer esta função. É um recado bastante duro. Quem o recebeu a seco, sem preparo prévio, dificilmente esquece.

Na rede pública, até há pouco era praxe que as escolas simplesmente reorientassem as matrículas em direção às escolas especiais, nas quais os alunos deixavam de conviver com o contexto social em seu sentido mais amplo. Atualmente, as queixas a respeito da oferta e do atendimento de qualidade predominam em muitas reclamações a respeito da rede pública, enquanto o único indicador disponível à sociedade diz respeito ao número de matrículas. Sobre qualidade no atendimento, os dados são precários a quem quer que tente consultar dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), do Ministério da Educação ou mesmo de pesquisas não governamentais.

Além da escola, o preconceito contra a deficiência se expressa de muitas outras maneiras: no isolamento imposto pelo convívio social muitas vezes dificultado; na invisibilidade das pessoas que pouco se veem se representadas e reconhecidas nos produtos culturais e nos meios de comunicação; e no acesso ao trabalho, por exemplo, quando são comumente vistas como pessoas de menor capacidade e sua presença é tolerada muitas vezes apenas por obrigação legal e formal. Porém aí está justamente um dos pontos críticos deste debate, mas bem pouco visualizado.

Eu diria que a Lei Brasileira de Inclusão, de certo modo, representa muito bem um jogo de forças entre quem deseja incluir-se e entre quem deseja excluir e manter os mecanismos de exclusão da pessoa com deficiência. Basta ver o trâmite e os vetos que a própria presidente da república, Dilma Rousseff, realizou no ano passado na redação final da lei, atendendo os interesses corporativistas do mercado em detrimento dos direitos das pessoa com deficiência.

Talvez seja por perceber o precário interesse estatal em defender o instrumento legal que instituições decidam por deflagrar um ataque tão frontal aos seus principais dispositivos de garantia de direitos. Talvez seja por receber a redundância do recado negativo que pessoas com deficiência e suas famílias olhem com desconfiança para a medida de liberação contingencial do aborto, que poderia significar não a resolução de problemas políticos e sociais, mas a poda do mal pela raiz, uma vez que, se o número de pessoas com deficiência decrescesse, tanto o Estado quanto a sociedade de mercado desincumbir-se-iam desta problemática. É a teoria do estorvo, que muitas outras minorias conhecem bem, principalmente aquelas em vias de extinção, como os indígenas. Todavia, também talvez por perceber isso, as pessoas em condições de evitar entrar de sola nesse mundo de exclusão pense, deseje e efetivamente evitem-no; quem poderia condená-las por isso?

Deficiência e detecção precoce no Brasil

Equilibrar os direitos reprodutivos e a proteção dos direitos das pessoas com deficiência requer, no mundo contemporâneo, a habilidade de transitar sobre o fio da navalha, ainda mais que em solo brasileiro confunde-se muitas vezes “proteção” com “sequestro” e “prevenção” com “eugenia”.

Ora, uma mãe de uma família de classe média alta que, ao detectar precocemente qualquer deficiência (síndromes genéticas, doenças congênitas, etc.) no feto, opta por ingerir, com toda a segurança do mundo, um medicamento disponível no mercado paralelo e que finaliza imediatamente a gestação “problemática” ou ainda aquelas que se valem das técnicas introduzidas pelo Diagnóstico Genético Pré-Implantação (DGPI), que permite a detecção de condições congênitas e diversos diagnósticos cromossômicos e optam por tentar “outra vez”, como sugeriu o biólogo inglês Richard Dawkins recentemente ou o suprassumo da segurança reprodutiva: lança mão dos recursos de reprodução assistida para garantir uma prole a salvo da condição de deficiência (e de lambuja selecionando o sexo e outras características genéticas no futuro bebê) previamente, seriam menos “eugenistas” que as que buscariam o direito à interrupção no caso da microcefalia? Ou o termo aqui não se aplica? Neste caso, por que não? Por que há empresas explorando comercialmente o negócio e sugerindo as maravilhas de uma gestação a salvo de qualquer intercorrência natural? Por que há médicos e especialistas chancelando a prática, promovendo-a em congressos destinados, ora vejam só, a promover o bem estar e o desenvolvimento das pessoas com deficiência?

Quer dizer que são aquelas mães, pobres em sua maioria, que engrossam as estatísticas do risco gestacional e da exposição à insegurança jurídica as “eugenistas”?

Alguém há de pensar que não faz diferença, mas isso não corresponde à realidade. Isso porque o acesso à “eugenia”, caso se prefira chamá-la assim, já é garantido nesses casos. Como disse, é até mesmo estimulado entre as próprias famílias de pessoas com deficiência, num discurso tão contraditório quanto inconcebível. Trata-se de um comportamento, em determinados meios sociais, tido como absolutamente normal. Ninguém é criminalizado por isso e, de certo modo, ninguém se culpa por emitir este NÃO, que é privado e ninguém vê, mas que aos poucos ganha a cena, os congressos sobre deficiência e o mercado, já que o principal para isto existe mesmo: clientes. Já no caso dos pobres, este seria um NÃO público e condenável, penalizado e estigmatizado, porque essa mãe seria igualada à perfídia em pessoa, enquanto as demais apenas estariam tomando uma decisão pessoal, liberal e espontânea.

Daí que aventar-se que o direito ao aborto não exista no Brasil é uma hipocrisia já um tanto sem graça, porque conforme o amplamente noticiado, sabe-se que o SUS realiza 200.000 procedimentos pós-aborto anualmente e a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia calcula que são realizados por ano 700 mil abortos no país. O Brasil é tão bom em desigualdades que até mesmo em relação à temível eugenia, há algumas interrupções que são toleradas, porque encobertas pelo mesmo amparo que desprotege quem não pode arcar com estes custos, enquanto outras simplesmente NÃO são.

O vínculo que muitas vezes se quer fazer em relação à microcefalia e o direito ao aborto poderia parecer de imediato uma amplificação dessa expectativa negativa em relação à deficiência, como se ficasse consolidada daqui em diante a perspectiva de eliminação da vida indesejada. Este é um dos tantos raciocínios de oposição, binaristas, que não aceitam a diversidade de opinião e de escolha e que submetem à liberdade ao crivo da moralidade, deixando de perceber que a moralidade é sempre como um guarda-chuvas e se alguém se sente confortável ali, isso não quer dizer que todos os demais venham a sentir-se também ou muito menos tenham esse dever.

Por isso, em minha opinião, não é “eugenista” a mãe ou o pai (principalmente a mãe, lógico) que se vê na situação de arcar com um filho/filha com deficiência cuja causa poderia ter sido evitada se as autoridades cumprissem suas obrigações e opta pela interrupção. Isto não é um acidente genético e equipará-lo a tais condições não é senão o senso comum penalizador atuando e trazendo de reboque consigo a moral pequeno-burguesa.

Da mesma forma, não penso que seja “eugenista” a mãe que decide por todos os meios livrar-se da mera possibilidade da intercorrência de uma deficiência. Para mim, trata-se de alguém que simplesmente lança mão de recursos que estão ao seu dispor, cuja decisão é de todo pessoal, embora seja condicionada por uma ideologia cada vez mais atuante no Brasil, de onde até então não era tão visível assim, mas já existia.

Ainda assim, o preconceito em relação à deficiência existe e é vividamente real e pode, se transmitido negativamente, promover mais pânico e emissão de ainda mais mensagens negativas em relação à deficiência, resultando na cristalização do conceito de “vida indesejada”. Seja como for, muitas vezes parece que há pouco a fazer nesse sentido a não ser persistir na criminalização da pobreza. Enquanto a classe média e alta toma suas providências, as mulheres pobres são as “abortistas”. Essa perversidade social, se não é nova por aqui, é sempre surpreendente, porque volta a revelar-se na renovação de uma moralidade que faz vistas grossas à “interrupção preventiva”, mas condena publicamente a “escalada” do aborto.

Concluindo

Como o Brasil é hábil em encontrar soluções intermediárias em qualquer situação, tudo que não se deseja é a manutenção dos direitos de uns em detrimento dos demais, embora fugir do maniqueísmo no Brasil recente seja tarefa das mais hercúleas e agora, como ninguém pode ou precisa em absoluto acolher a decisão e opinião alheias, uma nova guerra de foices se avizinha, a não ser que abaixemos as armas e usemos mais da racionalidade que das paixões morais.

O NÃO que porventura se escute proveniente de pessoas com deficiência e de suas famílias é claro que deve, sim, ser percebido socialmente, porque este é o NÃO que, desamparados muitas vezes, eles têm escutado em sua interação com a sociedade. Todavia, preservar seus direitos nem por hipótese compete em sua eliminação sistemática. Porém daí a condenar à miserabilização uma geração inteira de pessoas com deficiências evitáveis, em função de um tabu de araque, é de uma vileza que mesmo nestes trópicos me soam exageradas.

Um cidadão qualquer que observe com atenção este movimento, percebe sem dificuldades que a proteção legal à pessoa com deficiência é sempre relativa e muitas vezes falha e que o recado subjacente vêm se mantendo ao longo da história. Em relação às pessoas com deficiência, ainda prepondera o NÃO social frente ao sim que a sociedade felizmente muitas vezes consegue exprimir. O sentimento de rejeição e o preconceito experimentado pelas pessoas com deficiência é, portanto, um pouco diferente dos demais preconceitos que se perpetram contra minorias, porque ele se materializa precocemente e é aceito e, sob certo aspecto, até incentivado explicitamente.

Talvez daí, e essa é uma explicação para lá de apressada, que muitas pessoas com deficiência e seus familiares pressintam no movimento em torno da autorização legal do aborto em casos de microcefalia causada pelo vírus Zika, já que a microcefalia é causa de múltiplas e graves deficiência, uma confirmação dessa negativa que eles sentem vividamente na série de NÃOS que a sociedade e suas instituições vêm emitindo em sua direção. É como se, à possibilidade de prevenir-se uma situação dessas, fosse preferível que ninguém passasse por isso, sejam quais forem as causas disso vir a acontecer. É outro NÃO o que repercute nos sentimentos das pessoas. E é um NÃO que justamente desobriga o mundo externo, o ambiente social, a estar apto ao seu trânsito físico e mental, com tudo o que ele representa.

Ninguém, em um estado são de consciência, sugeriria eliminar pessoas já nascidas, como fatos bem conhecidos na história do séc. XX. Entretanto, a mensagem da vida indesejada às vezes é como um grito entre os vivos, como se eles fossem pessoas cuja eliminação prévia não teria funcionado a contento. Não entender a violência subjacente a essa proposição tem feito com que muitas pessoas interpretem como “eugenia” a mera possibilidade de permitir o aborto nos casos de exposição ao Zika vírus.

Onde o direito à opção não existe, como é o caso brasileiro, é um risco considerável o de que a discussão pública em torno do tema viesse a esbarrar na muralha da penalização. Ainda assim, sugerir-se que as mulheres grávidas de fetos com má formações severas como as causadas pelo vírus Zika levem a gestação a termo, uma vez que a propagação do vírus pode ter ocorrido por omissão do Estado, é apenas uma penalização duplicada. Tendo-se em vista que, na prática, a interrupção é praticada em situações alheias à lei, mas coincidentes ao poder aquisitivo das mulheres, deixar de verificar o mesmo direito às demais significa livrar um parcela ínfima da população do “incidente” e condenar justamente quem menos meios teve para proteger-se da infecção.

Forçado por uma situação ainda um tanto incontornável, porque a relação entre o Zika vírus e a microcefalia ainda não foi plenamente compreendida, o temor à deficiência aportou com força no Brasil da pós-modernidade, de um modo como nunca antes havia chegado, embora se insinuasse aqui previamente por muitas maneiras e através de outros fenômenos socioculturais, como o racismo, etc. Mesmo que recusadas por parte da sociedade, são ideias-força relevantes e que se replicam exponencialmente, tanto quanto o Zika vírus, e que trazem consigo muitas incoerências que, se nem de longe estão de repetir a tragédia do holocausto nazista, ressignificam a ideia do temor à deficiência, numa releitura de conceitos apenas supostamente suplantados pela história, como o sanitarismo eugenista nascido em fins do séc. XIX, desembaraçado agora pela ideologia liberal. Contrapô-los aos direitos reprodutivos das mulheres é que está inadequado, porque seletivamente a “prevenção” ou “seleção eugenista” acontecerá (já vem acontecendo, como demonstra a jornalista Claudia Collucci, da FSP). Não se pode é, sequestrando-se a dignidade das pessoas com deficiência, usá-las para a manutenção da desigualdade que afeta as mulheres pobres a quem mais tarde se recusará reparar os danos.

Isso tudo, claro, ocorrerá se não nos atrevermos a refletir sobre os direitos dos outros e a considerar a crise da microcefalia uma oportunidade incomum de revisar conceitos, preconceitos e os contornos jurídicos de uma sociedade que vê as benesses da biotecnologia chegar a apenas alguns que exercem como querem sua liberdade. Aos demais, a danação dos tabus, dos serviços públicos arruinados e das declarações oficiais infelizes e desencontradas.