Pontapé inicial em que direção?
A visibilidade na abertura da Copa do Mundo centrada em um paraplégico “recuperado” não é sinônimo de qualidade de vida para um bilhão de pessoas com deficiência ao redor do mundo.

Por Izabel Maior *
Absorvidos pelos debates político e econômico relativos às iniciativas para a Copa do Mundo da FIFA de 2014, muito pouco se discutiu sobre o chute inicial do jogo do dia 12 de junho, que acontecerá na Arena de São Paulo, entre o Brasil e a Croácia. A mídia anunciou que uma pesquisa científica inovadora colocará em campo um jovem com deficiência física instrumentalizado com recursos tecnológicos. Os recursos permitirão superar a paralisia de suas pernas. O jovem levantará da cadeira de rodas, caminhará cerca de 30 metros e dará o pontapé inaugural, frente a uma audiência planetária.
É natural que diversos grupos de interesse se mobilizem para divulgar suas ideias e mostrar os resultados de pesquisas para a sociedade. Obter espaço de destaque no maior evento internacional da atualidade, com milhões de espectadores, é um grande feito. No caso da Copa, caberá aos estudos da equipe do neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, radicado na Duke University, nos Estados Unidos, expor os avanços da interação cérebro-máquina em seres humanos com paraplegia e tetraplegia. De acordo com as informações gerais, os estudos se desenvolvem em parceria com instituições na Suíça, Alemanha e Brasil (Natal e São Paulo).
O convidado paraplégico estará vestido com uma armadura chamada exoesqueleto, com eletrodos para estimular músculos paralisados devido à lesão medular. Os eletrodos captarão a atividade elétrica cerebral para acionar voluntariamente os grupos musculares envolvidos na atividade de mover a coxa e a perna para impulsionar a bola oficial dos jogos.
Acredita-se que a demonstração do estado da arte de uma das linhas de pesquisa para superar a paralisia, assistida por espectadores de 240 países, causará impacto na mídia, podendo gerar debates e incentivos no mundo acadêmico e fora dele.
A “cura da deficiência” é uma esperança legitima de uma pessoa com paralisia e este desejo se manifesta principalmente na fase inicial das lesões. Além disso, nas sociedades não inclusivas, que não provêem acessibilidade e assumem condutas discriminatórias, deixar de ter paralisia é basicamente um imperativo. Sabe-se que a situação desse segmento é marcada pela escassez de sistemas e serviços de atenção às suas demandas, apesar da luta historica do movimento civil de pessoas com deficiência.
O direito à saúde e à reabilitação é bem mais amplo e não se restringe a iniciativas como o “Walk Again Project” (Projeto Andar Novamente) e similares. Esse ponto precisará ser bem analisado e explicado, caso contrário, o mundo receberá uma imagem distorcida da realidade brasileira e dos outros países. É praticamente impossível imaginar, por exemplo, que pessoas com deficiência em países em desenvolvimento tenham possibilidade de andar novamente a partir de um recurso como este devido principalmente a seu alto custo.
A visibilidade na abertura da Copa do Mundo centrada em um paraplégico “recuperado” não é sinônimo de qualidade de vida para um bilhão de pessoas com deficiência ao redor do mundo.
Deseja-se que o legado da Copa de 2014 atenda de forma integral à sociedade, incluídas as pessoas com deficiência. Assim como as avançadas pesquisas em neurociência precisam, sem sombra de dúvida, prosperar no Brasil e no mundo, a inclusão continua a ser o resultado a ser perseguido.
O principal legado deverá envolver as ações de acessibilidade física e comunicacional nos estádios, entorno, a mobilidade nas cidades-sede, atendimento ao público, locais de hospedagem, de turismo e lazer de acordo com o desenho universal.
Todos esses pontos merecem igualmente o foco de atenção dos organizadores, da mídia nacional e internacional e dos anfitriões da festa.
Sem dúvida, é uma imagem que ficará gravada para sempre nas nossas memórias. Entretanto, quando estiver disponível no mercado um equipamento como o exoesqueleto, ele será acessível apenas a uma ínfima parcela daqueles que não andam. Já o investimento em acessibilidade trará benefícios para muito além do pontapé inicial.
*Izabel Maior é médica e ativista do movimento das pessoas com deficiência.
Izabel
Parabéns por mais este texto, lúcido, equilibrado, profundo, que ilumina o outro lado deste fato, que certamente será um evento midiático que ficará gravado em nossos olhos e corações, como o primeiro passo do homem na Lua!
Entendo que pesquisas como essa, ousadas, criativas, que mobilizam recursos (não apenas financeiros) de várias Universidades e laboratórios de pesquisa, em vários países são da maior relevância. Boa parte do trabalho desenvolvido é pro bono (voluntário), mostrando que é possível, sim, unir conhecimentos e esforços de forma generosa, indo além da dotação destinada a pesquisas.
Espero muito que esse exoesqueleto possa se tornar acessível a muitos; creio que uma pesquisa tão abrangente como esta também trará desdobramentos e outros produtos, que serão igualmente benvindos, porque necessários.
Mas também concordo com vc que o legado mais imediato e com maior possibilidade de replicabilidade imediata e generalizada sejam outras medidas também relacionadas à mobilidade, comunicação, etc. E infelizmente ainda vejo que estas são tímidas.
A audiodescrição,por exemplo – até onde sei – será feita por pessoas que receberão um treinamento rápido. Ora, essa é uma ocupação que foi regulamentada e consta da CBO – Classificação Brasileira de Ocupações. Ela requer capacitação, da mesma forma que uma tradução/interpretação profissional de Libras.
O legado de acessibilidade da Rio +20 foi um verdadeiro e maravilhoso legado, que deveria servir de parâmetro para a Copa, Olimpíadas, etc.
Enfim, Parabéns!! E muito obrigada!
abraços
Marta Gil
Espero que o exoesqueleto desperte nas autoridades, principalmente nos prefeitos a necessidade de se investir mais em ACESSIBILIDADE. De nada vai adiantar no futuro se este equipamento tiver custo baixo se até as pessoas que não tem deficiência física por exemplo não conseguem caminhar com segurança na maioria das calçadas brasileiras. É preciso que nossos dirigentes municipais assumam a responsabilidade pela construção e manutenção dos passeios, que segundo o Código Brasileiro de Trânsito são um complemento da via de automóveis, portanto um bem público e não particular. Se é público quem tem a obrigação de construir e manter é o poder público. Nossas propriedades são delimitadas no muro e não no meio fio. É dever também dos estados e governo federal disponibilizar recursos urgentes para a adequação de nossas calçadas não só as PcD, mas também aos idosos que são os que mais sofrem com o estado calamitoso que as mesmas se encontram. Sem recursos orçamentários toda esta discussão acaba virando demagogia. Que se faça um Plano Nacional de Acessibilidade o quanto antes e se crie um fundo para ajudar os pequenos municípios. Com planejamento dentro de vinte anos poderemos tornar nossas cidades mais acessíveis. É só ter a “famigerada” vontade política.
nossa!!! excelente reflexão da Isabel Maior, o que precisamos é de nossos direitos assegurados e cumpridos, porque ao invés de investir em proetos mirabolantes não colocam pessoas com deficiência para dar o chute inicial da copa? não custaria nada e ainda levantaria a discussão sobre a acessibilidade como aquele secretário do rio que disse que as pessoas com deficiência não eram público alvo da copa. Ao invés de tentar nos curar como no modelo médico porque não fazerem ações afirmativas, médico que é médico não fica espalhando aos 4 ventos suas descobertas até que sejam cientificamente comprovadas. Será que não sabem que cada pessoa reage de maneiras diferentes a estas pesquisas, se forem ver o público delas é para pessoas com características bem específicas.
Kesia Pontes
Olá Izabel,
Parabéns pelo artigo! Concordo 100% com a abordagem e conclusões.
Abs,
Regina Atalla
Infelizmente o exoesqueleto não teve a visibilidade esperada, assim como tudo o que se refere à melhoria da acessibilidade e qualidade de vida da pessoa com deficiência no Brasil.
Realmente é um grande passo para a vida dos paraplégicos, mas me deixa com muito medo essa tecnologia. Imaginem um ladrão robô, controlado pela mente humana?!?!