Desenho de professora com uma maçã na mão

Por Maria Teresa Manfredo
na Com Ciência

Em maio deste ano, a professora do Rio Grande do Norte, Amanda Gurgel, virou uma espécie de heroína nas redes sociais, defendendo a causa da valorização e melhores salários para sua classe profissional. Um vídeo no qual ela silencia os deputados potiguares em audiência pública, quando fala sobre a situação da educação, já teve mais de 2 milhões de visualizações no site YouTube. Explodiu nas redes sociais e as emissoras de televisão não perderam a oportunidade de captar a audiência com tal fenômeno virtual. Ao observarmos a questão da valorização do professor em nosso país, podemos nos perguntar: o que há de novidade no discurso de Gurgel? O que daquilo que foi declarado nós já não sabíamos? Fato é que nos últimos anos o Brasil tem avançado na direção da garantia de educação básica para todos, conforme assegura a Constituição Federal. Contudo (e talvez por isso o vídeo de Gurgel chame tanta atenção), a construção da qualidade do ensino é indissociável do respeito e da valorização dos profissionais da educação – fato que, no Brasil de hoje, pode ser apontado, muitas vezes, mais como retórico do que efetivo.

Tendo como uma de suas diretrizes a valorização dos profissionais da educação, a Câmara dos Deputados está discutindo o novo Plano Nacional de Educação (PNE), construído em 2010, a partir da I Conferência Nacional de Educação (Conae). Dentre as 20 metas, as de números 15, 16, 17 e 18 giram em torno da ideia da valorização do magistério, propondo, por exemplo, a formação de nível superior para todos os professores da educação básica – contando que 50% desses tenham o nível de pós-graduação. Tais metas também visam à garantia de formação continuada para todos os docentes do ensino básico, a consolidação de um piso salarial melhor e menos desigual, além da garantia da existência de planos de carreira para os profissionais do magistério, em todos os sistemas de ensino.

Políticas públicas de educação e valorização dos profissionais da área

A luta pela qualidade da educação pública não é algo recente. Na década de 1920, com a fundação da Associação Brasileira de Educação (ABE), o tema adquiriu visibilidade com o lançamento do “Manifesto dos pioneiros da educação nova”, em 1932. Já em meados da década de 1950, foi lançada a Campanha em Defesa da Escola Pública, na fase final da tramitação do projeto de Leis de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação Nacional. Entre esses momentos de visibilidade da questão, também é importante citar as Conferências Brasileiras de Educação da década de 1980 e o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública na Constituinte e na nova LDB; processo que desembocou na elaboração da proposta alternativa de Plano Nacional de Educação nos Congressos Nacionais de Educação de 1996 e 1997.

Demerval Saviani, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sinaliza que essa longa luta pela qualidade “se mantém com grandes dificuldades nesse início do século XXI, na forma de resistência às políticas e reformas em curso e na reivindicação por melhores condições de ensino e de trabalho para os profissionais da educação”.

Sobre a valorização dos docentes, o país já teve diversos tipos de planos e políticas públicas, como é o caso recente do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), de 2007, que busca atacar aspectos tais como os baixos salários dos professores da educação básica; os baixos níveis de aprendizagem na alfabetização e o fraco desempenho das administrações municipais na organização adequada das escolas. De acordo com a educadora Leda Scheibe, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o PDE “representou uma série de medidas educacionais que são um avanço em relação à situação vigente nas escolas”. Outra ação realizada nesse sentido foi o Programa Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (Parfor), lançado em maio de 2009.

Resultado da ação conjunta do Ministério da Educação (MEC), de Instituições Públicas de Educação Superior e das Secretarias de Educação dos estados e municípios, o programa foi direcionado aos professores em exercício das escolas públicas estaduais e municipais sem uma formação que estivesse adequada à Lei de Diretrizes e Bases (LDB)( atualmente em vigor, aprovada em 1996)e oferece cursos superiores públicos e gratuitos. Já o Pró-Funcionário, programa de dezembro de 2010, instituiu a política nacional de formação dos profissionais da educação básica e dos funcionários da escola. Entre seus objetivos fundamentais estava a valorização do trabalho desses profissionais da educação, através do oferecimento de cursos de formação inicial em nível técnico. Para Scheibe, estes “são programas que visam alcançar uma maior proximidade com as condições ideais de formação, ainda longe de serem alcançadas”.

Para a historiadora da educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Maria Auxiliadora Cavazotti, “diferente do PNE – um documento de apresentação de metas para políticas de educação –, o PDE e o Parfor constituem tentativas de operacionalização de metas”.

Também, iniciativas tais como a lei 11.738/2008, que instituiu o piso salarial nacional para os profissionais da educação e, mais recentemente, as Diretrizes Nacionais para os Planos de Carreira e Remuneração dos Profissionais do Magistério da Educação Básica, de 2009, foram constituídas com a finalidade de valorizar o campo profissional. A referida lei estabeleceu que todos os professores da rede pública de ensino com formação de nível médio devem ter piso salarial atual de R$ 1.187,00 e carga horária máxima de 40 horas semanais.

Quando a lei foi aprovada, em 2008, o texto foi questionado em ação direta de inconstitucionalidade impetrada pelos governos do Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Ceará e Mato Grosso do Sul. A ação somava-se à “alegação de que as prefeituras não teriam verba para pagar os novos salários”, explica Cavazotti.

No período em que ação de inconstitucionalidade foi realizada, professores de 21 estados foram às ruas protestar e pedir a aprovação da lei. Em agosto deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) publicou um acórdão onde declarava como constitucional a lei do piso salarial. Além disso, o STF afirmou que os novos valores devem ser encarados como vencimento básico, sem gratificações e outros adicionais. Cavazotti cita que a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) aponta que 17 estados não pagam aos professores o mínimo já estabelecido em lei. “Estados e municípios podem pedir ao Ministério da Educação empréstimos para completar a verba destinada ao pagamento de professores, mas para consegui-la precisam provar que investem 25% de suas receitas em educação. Não há levantamento sobre o pagamento nas redes municipais”, afirma.

Precarização generalizada?

Em palestra proferida na V Semana da Educação, da Faculdade de Educação da Unicamp, Dermerval Saviani apontou que a valorização dos professores está vinculada à questão da formação, às condições de exercício da profissão (incluindo-se aí carreira e salário), e condições de trabalho.

Segundo dados de uma pesquisa realizada em maio de 2010 pelo Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp) em conjunto com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o salário base dos professores paulistas apresenta perdas desde, pelo menos, a implantação do atual Plano de Cargos e Salários, em 1998.

Além disso, no que diz respeito a condições de trabalho, quase metade dos professores de escolas públicas de São Paulo tem diagnóstico de estresse, conforme mostra pesquisa com 1.615 entrevistados realizada também pelo Dieese e Apeoesp, em setembro de 2010. Os resultados indicam que 48,5% dos professores entrevistados têm diagnóstico confirmado de estresse. Do total, 63,6% afirmaram lecionar mais do que a carga horária designada e 54% disseram ter mais de 35 alunos por sala de aula. Dados como esses revelam que a atual desvalorização do profissional da educação não é apenas um mito, ou algo subjetivo – trata-se de algo concreto.

Essa desvalorização não acontece só no estado de São Paulo. Maria Aparecida Cecílio, da Universidade Estadual de Maringá (UEM), lembra que no caso das políticas de atendimento às necessidades de valorização do magistério, a conjuntura nacional revela, apesar das disparidades regionais, processos um tanto comuns de precarização da carreira docente. “Basta observarmos os confrontos entre os agentes do Estado (força policial) e professores, nos períodos de greve por melhorias salariais. Aliás, como as que estamos assistindo em Belo Horizonte e Fortaleza, dentre outras localidades, neste ano de 2011”, exemplifica ela.

O prestígio do magistério

A valorização do professor primário é quase sempre lembrada como uma marca do ensino no passado e, sobretudo, nos anos 1950, que foi uma espécie de “idade de ouro” da profissão no Brasil. Para Sheibe, da UFSC, tal fato pode ser interpretado a partir da forte presença feminina na profissão, sendo que essas mulheres eram originárias, em geral, das camadas abastadas da sociedade brasileira da época, provindas, predominantemente, da escola normal.

Assim, o oficio de professor primário era visto como profissão ajustada com as características femininas e compatível com o matrimônio e, portanto, aceito para os padrões morais da elite da época. De qualquer forma, Scheibe lembra que “o trabalho da mulher em tempos mais antigos era visto como um trabalho missionário, cuja remuneração era, antes de tudo, simbólica, afinal, para os padrões vigentes, quem deveria sustentar o lar era o marido”.

Para Cecílio, da UEM, a precarização da carreira docente no Brasil é histórica. As constituições brasileiras, no que se refere à educação, documentam os limites das ações do Estado na garantia do direito universal à educação, o que explica, em parte, a condição de desvalorização docente no Brasil, no século XXI.

Scheibe destaca que, nos anos 1960, o aumento do custo de vida, em descompasso com o aumento salarial; a expansão do sistema escolar público e a aceleração da inflação foram fatores que afetaram e comprometeram as condições de trabalho dos professores. O caráter sacerdotal do oficio do professor passa a ser questionado e a figura do professor como um profissional desvalorizado começa a se impor.

Ainda conforme aponta Scheibe, “o golpe militar de 1964 traz um período no qual a categoria não pode mais contestar contra a desvalorização de seus salários, nem contra as más condições de trabalho”. Mas já no final dos anos 1970 e nos anos 1980, os professores promovem greves em vários estados e participam nos processos de reconquista das liberdades políticas, com espaço para a consolidação do sindicalismo da categoria nos anos 1980 e 1990. “Entramos no século XXI com uma situação de desprestígio dos professores, acompanhando a quase universalização da oferta da educação fundamental no país”, afirma Scheibe.

Já Cavazotti, da UFPR, argumenta que “em termos absolutos, jamais houve um período da história brasileira de maior prestígio do professor. O que é possível dizer é que alguns setores do magistério foram sim mais valorizados em alguns momentos”. Segundo ela, esse é o caso do ensino superior, objeto de valorização salarial e social até a década de 1980, e em franca queda após a flexibilização do trabalho no final da década de 1990.

A falta de garantia ao acesso e à permanência dos sujeitos nos processos educativos, inclusive nos processos de formação de professores, são traços da história da precarização da carreira docente no Brasil, “o que indica que há muito o que fazer para que o Estado brasileiro garanta políticas públicas universais para educação, além dos esforços empreendidos em âmbito nacional na última década”, afirma Cecílio.

Fonte: Com Ciência