Por Simone Biehler Mateos – de São Paulo

Pouca gente, além dos diretamente envolvidos, sabe que boa parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), todo o Programa Nacional de Habitação, o plano de expansão das universidades públicas, o ProUni, a criação do Sistema Único de Assistência Social (Suas), as políticas afirmativas contra a discriminação racial, de mulheres e minorias sexuais e o amplo conjunto de medidas que impulsionaram enormes avanços na agricultura familiar nos últimos anos foram formulados e decididos com a participação direta de milhões de brasileiros, por meio de inúmeros canais criados ou ampliados para consolidar a democracia participativa no país.

Só as 73 conferências nacionais temáticas realizadas para debater políticas públicas envolveram, em seus vários níveis, cerca de cinco milhões de pessoas. Mais da metade dos conselhos nacionais de políticas públicas que contam com participação popular foram criados ou ampliados nos últimos oito anos.

A participação popular na elaboração, implementação e fiscalização das políticas públicas ganhou amplitude sem precedentes, contribuindo para aumentar tanto a eficácia e abrangência das ações públicas, como a capacidade de formulação dos movimentos sociais.

Durante esse período, programas estruturantes como as medidas conjunturais relevantes foram decididos e implementados por meio de diálogo direto e da mais ampla negociação com os movimentos sociais. Para isso foram criados ou ampliados diversos canais de interlocução do Estado com os movimentos sociais – conferências, conselhos, ouvidorias, mesas de diálogo etc. -, que já configuram o embrião de um verdadeiro sistema nacional de democracia participativa.

Políticas de desenvolvimento, geração de emprego e renda, inclusão social, saúde, educação, meio ambiente, segurança pública, defesa da igualdade racial, dos direitos das mulheres ou de minorias sexuais, dentre tantas outras, foram discutidas nas 73 conferências nacionais sobre políticas públicas. Elas representam 64% do total desses encontros (114) realizados no Brasil nos últimos 60 anos, e abrangeram um leque de temas nunca antes levados ao amplo debate popular pelo poder público (ver tabela 1 pág. 22). Os assuntos abordados e deliberados vão desde saneamento e habitação à políticas de geração de renda, reforma agrária, reforma urbana, direitos humanos, política científica e tecnológica, de uso das águas, estratégias para o desenvolvimento de Arranjos Produtivos Locais (APLs), passando por temas específicos como saúde indígena ou defesa dos direitos das minorias sexuais.

A maior mudança nesse processo democrático, segundo Roberto Pires, técnico de planejamento e pesquisa do Ipea, é que “estes espaços de participação têm gerado oportunidades para atores sociais, grupos, movimentos, associações localizarem suas demandas. São grupos que, frequentemente, por representarem minorias políticas, têm grande dificuldade de levar suas demandas aos legisladores e formuladores de políticas públicas”.

Com formato congressual, algumas conferências começam com debates por bairro ou escola (como as de educação), todas têm etapas municipais que discutem teses de um documento base e elegem representantes para o encontro regional ou estadual, de onde saem os delegados nacionais. Delegados dos ministérios participam ativamente de seus grupos de trabalho e das plenárias das conferências nacionais, trazendo dados, opinando, divergindo e interagindo com os participantes desses encontros, boa parte dos quais contou com a participação do próprio presidente da República.

Esses encontros nacionais, em sua maioria realizados em Brasília, costumam reunir entre 600 e cinco mil pessoas anualmente ou a cada dois ou quatro anos, dependendo do tema. Até brasileiros que vivem no exterior já puderam participar de duas conferências, de Comunidades Brasileiras no Exterior, realizadas em julho de 2008 e outubro de 2009.

As diretrizes aprovadas nas diversas conferências nortearam políticas públicas elaboradas, fiscalizadas e avaliadas pelos 61 conselhos de participação social que – integrados por representantes do governo e da sociedade civil – hoje assessoram as ações de todos os ministérios. Muitas das suas deliberações já se tornaram decretos, portarias ou projetos de lei aprovados ou em tramitação no Congresso Nacional.

Mas as conferências nacionais não foram os únicos canais de participação ampliados nos últimos anos. Dos 61 conselhos nacionais de políticas públicas com participação popular existentes, 33 foram criados ou recriados (18), ou democratizados (15) desde 2003. Hoje, 45% de seus membros são do governo e 55% da sociedade civil, incluindo, dependendo do caráter do conselho, representantes do setor privado e dos trabalhadores em geral ou de dado setor, da comunidade científica, de instituições de ensino, pesquisa ou estudos econômicos, assim como por organizações de jovens, mulheres e minorias.

Por meio das conferências, conselhos, mesas de negociação, audiências públicas e outros canais, tanto os grandes programas do governo – inclusive o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) e o Minha Casa, Minha Vida -, como as medidas conjunturais mais importantes – como as de combate à crise – foram previa e amplamente discutidos com a sociedade civil organizada. Ao mesmo tempo, projetos polêmicos – como a transposição do rio São Francisco, a construção das duas usinas do rio Madeira e da BR 163 e o plano de Desenvolvimento Sustentável da Ilha de Marajó – foram objeto de diversas audiências públicas nos municípios afetados.

E para temas importantes e específicos – como uma política para a valorização do salário mínimo, a melhoria das condições de trabalho no setor sucro-alcooleiro, as reivindicações das mulheres camponesas, do funcionalismo, dos atingidos por barragens, da moradia popular – foram criadas mesas de negociação permanente.

“Todas as medidas de maior impacto econômico e social do governo foram decididas e implementadas com ampla participação social”, frisa Luiz Soares Dulci, ex-ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República. Tradicionalmente um órgão de assessoramento das articulações políticas do governo com o Congresso, com algumas tarefas administrativas relacionadas ao Planalto, a partir de 2003 a Secretaria ganha formalmente a função de articular uma estreita comunicação do governo com a sociedade civil organizada. A partir daí, todas as políticas importantes passam a ser formuladas junto com os movimentos sociais nas conferências, conselhos e mesas de diálogo.

PROCESSO IGNORADO Apesar do amplo alcance destas políticas, poucos dos afetados sabem que também o Plano Nacional de Habitação, a Lei Nacional de Saneamento e a de Resíduos Sólidos (já aprovadas) ou o Marco Regulatório da Mobilidade Urbana (em tramitação) refletem essencialmente formulações feitas pelos movimentos sociais no Conselho Nacional das Cidades e nas quatro conferências nacionais que este realizou desde que foi criado, em 2003.

Essas duas instâncias deram institucionalidade e amadureceram reivindicações dos movimentos comunitários que haviam começado a tomar forma na década de 1980, como o Fórum Nacional da Reforma Urbana. Centrado inicialmente em moradia, o fórum logo passou a discutir transporte, saneamento e mobilidade e acabou convidado a participar da elaboração do programa de governo apresentado no segundo turno das eleições para o primeiro mandato de Lula.

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