Imagem de braços e mãos, de diferentes cores e matizes, que se estendem para além de uma cerca de arame farpado. Uma alusão as diferentes formas de aprisionamento e cerceamento de liberdades, ou de violações de Direitos Humanos, que vem sendo banalizadas e naturalizadas em nosso mundo globalizado na Idade Mídia. Hoje uma referência às possíveis formas de controle de violência que poderão ser implantadas pela Sociedade do Controle para que a violência não retorne ao interior dos muros da escola.

Por Jorge Marcio Pereira de Andrade, do InfoAtivo Defnet

“Sou contra meu irmão e meu irmão é contra o meu primo, mas meu irmão, meu primo e eu somos contra o vizinho”

(Provérbio libanês – recolhido em recorte de jornal dos anos de guerra no Líbano, com o título: Luxo e morte: em meio à guerra, a mistura surrealista do Líbanoartigo de Charô Saavedra) Esta frase podemos aplicar aos conflitos do mundo globalizado no que chamamos de Oriente Médio, Mundo Árabe, Islã e norte da Àfrica, onde já se naturalizou a presença de fanatismos religiosos e sua implicação nos conflitos armados, que retroalimentam nossas xenofobias.

Escrevo este texto em luto. Eu sei o que é a sensação, os sentimentos e as ”dores” que a perda de um filho aos 13 anos de idade causam. Não irei fazer ilações ou especulações científicas ou psiquiátricas sobre o jovem franco atirador. Estamos diante da reedição do Tiros em Columbine na Escola de Wellington em Realengo. Espero, desejo e estimulo que se procure uma atenção especial aos que ficaram: os sobreviventes. Estes que, vivendo após um tsunami sangrento na escola, sentem añgústia e desamparo, buscando como enfrentar esse momento de perdas dos meninos e meninas. Estimulo e desejo que busquemos atitudes bio-éticas, para nos revoltarmos com a naturalização das sementes humanas e sociais do que chamamos de violência.

Eu conheci de perto a região onde esta escola está situada no Rio de Janeiro. Trabalhei alguns anos em um bairro próximo: Bangu. Aprendi e cresci muito com as vivências e experiências sócioculturais junto aos que eram chamados de ”suburbanos”. Nesse época era apenas um psiquiatra trabalhando em uma clínica de reabilitação psicomotora, de inspiração espírita, cuja clientela era composta pelos moradores desta região: a zona Oeste do Rio, onde o calor e as misérias atingiam seus picos máximos. São vivas, muito embora os seus ”suburbanos” não se sentissem assim. Estavam sempre buscando um outro modo de vida para si e seus filhos quando iam em busca de tratamento e reabilitação. A maioria destes cidadãos e cidadãs sonhava serem incluídas e não mais marginalizadas… Porém continuavam em desfiliação social. Continuavam intensamente conformados às suas pobrezas.

As indagações, amplamente midiatizadas, são hoje sobre a eclosão de uma violência espetacular nessa mesma região. E, apressadamente, nos colocamos nas mãos dos especialistas na loucura humana. Esquecemos de buscar raízes mais profundas. Esquecemos, emocionados, de perguntar o que nos leva a assistir hoje mais um tiroteio. Essa chacina foi embassada, pelo que nos informam, no fanatismo e nas ações suicidas de um jovem em sua ex-escola. Uma escola no bairro de Realengo, me traz a memória alguns dos jovens autistas, com distúrbios de conduta, deficiências intelectuais e outras condições psicomotoras, psicológicas e psiquiátricas. Todos e todas essas crianças e jovens eram classificados, à época (anos 80), como ”alunos excepcionais”.

Nós na posição de tele-espectadores ficamos perplexos e indagando o que se passa na mente de um franco-atirador. Mais ainda quando esse episódio é uma repetição de um modelo importado diretamente de Columbine, nos EUA. E, talvez aí esteja uma possível ”explicação” do modelo jovem kamikaze que mata, embora premeditamente, outros jovens e crianças no suposto espaço da convivência em harmonia: a escola. Esse é um espaço onde se espera que estejamos todos buscando aprender sobre a paz e não sobre a violência. Lamentavelmente, pelo que estamos tele-assistindo, esse espaço não é mais isolado das outras violências sociais e urbanas que já estavam, como ovos da serpente, sendo gestados nos REALengos que sangram.

O sofrimento que irá afetar os sobreviventes dos Tiros em Realengo é um fato a ser considerado. Talvez consigamos aí buscar ações que nos solidarize com o enfrentamento das injustiças e as misérias, de toda ordem, que possam ser o caldo de cultura das intolerâncias e dos fanatismos. O sofrimento alheio só suscita um movimento de protesto e solidariedade se resolvemos a clivagem entre pobreza, exclusão social e injustiças. Só podemos compreender os que estão vivos e, um dia, precisarão retornar ao cenário dessa escola pública. Só podemos tentar nos empatizar com os sentimentos dos seus pais e familiares que os receberão no retorno das aulas. É que a vida deles todos continuará sendo em um bairro da Zona Oeste. Esses sobreviventes continuarão na ”resignação” de suas perdas? continuarão, como os que passaram pela tragédia das Serras fluminenses, considerando uma fatalidade, agora resultante da ”natureza humana”?

Percebo, pela intensa espetacularização global, que nos preocupamos com a dissecção da mente do criminoso. Buscamos explicar “o que tinha na cabeça o jovem Welligton” e, explicar sua “loucura” através de seu texto sobre a impureza dos Outros. Esquecemos de dizer que a banalização da violência é decorrência direta da banalização das injustiças sociais. Esquecemos rapidamente dos moradores do Morro do Bumba, das favelas e suas palafitas, das milícias, dos tráficos, das condições sociais e políticas onde vivemos essa violência nossa de cada dia.

Muitos jovens, fora das salas de aula, também são “sacrificados” e muitos mortos nas tristes estatísticas das violências urbanas (sem falar das rurais). Há,nesse momento, apenas a diferença de que olhamos o cenário de uma guerra dentro de uma sala de aula. Um jovem maneja, com destreza, as armas que foram produzidas, guardadas e comercializadas sem nenhum escrúpulo ou sentimento ético de alguns que agora estão escandalizados com seus resultados mortais.

Em 24 de fevereiro deste ano foi lançado o Mapa da Violência – os jovens do Brasil”, que já apontava: “A violência entre jovens na faixa etária de 15 anos aos 24 anos cresceu no período 1998/2008. Nesta década, enquanto 1,8% das mortes entre adultos foram causadas por homicídios, no grupo jovem a taxa chegou a 39,7%”. Acredito que Wellington e sua família, assim como as famílias enlutadas de Realengo e adjacências, ainda em processo de ”sub-urbanidade” sócio, econômica, política, não consigam ainda realizar que as noções de responsabilidade e justiça concernem à ética e não à psicologia, muito menos à psiquiatria. Não bastará explicar em um indivíduo toda a insanidade que alicerça nossos ódios inconscientes e violências grupais.

Ficou-me uma pergunta, após um exercício matutino de ajuda a minha filha de 10 anos: como responder a ela sobre os muitos muros das escolas e da sociedade. Ela está estudando em sua escola comunitária sobre a Diversidade Humana. Hoje precisava responder sobre o tema e fazer uma pequena dissertação de como podemos aprender na convivência com a heteronomia humana. Ela finalizou sua resposta afirmando que “somos todos diferentes e iguais, e todos temos ancestrais”…A pergunta deixo-a para todos nós: como podemos aprender com a violência se ela é uma péssima pedagoga?

A triste e lamentável ação mortífera de Wellington pode ser um estímulo para esta reflexão. Isso dependerá de não banalizarmos, mais uma vez, com explicações que nos distanciarmos e nos eximirmos da nossas estranhas entranhas humanas. Temos todos implicações éticas e bioéticas com o que nos vem assombrando. E se não olharmos, com destemor, todos nossos terrores não poderemos, quem sabe, encontrar modos inventivos de escrever outras cartografias, outros modos de educar e nos educar. O que já disse hoje no Facebook aos professores do Rio de Janeiro e conclamo a todos educadores do Brasil: já passou da hora de incluirmos, ativamente, no currículo escolar a educação sobre e em Direitos Humanos.

Dirão alguns retrógrados e reticentes fascistas, a moda de Bolsonaro, que estamos somente cuidando dos Direitos Humanos dos “fora da lei”. Já cansei de seu bordão e clichê: e ”onde estão os humanos direitos?”. A eles indago agora sua direta implicação com o terror, seja nos Estados de Exceção, seja na legitimação das guerras e das torturas, ou, então, nas suas falsas aceitações da diversidade e da diferença, negando-se a se reconhecerem racistas, segregacionistas e homofóbicos. Foram estes que, não olhando no espelho, foram capazes de naturalizar o extermínio de jovens, bastando para isso que eles fôssem rotulados de ”subversivos”. Hoje, quem sabe, para estes apenas foram mortos jovens e crianças “suburbanas”, ou melhor “sub-humanas”, tal qual aquelas que morrem, nesse momento, como milhares de “moscas”,como vidas nuas e coléricas, no Triste e Insular Haiti.

Estou de luto. E lutarei com ele, pois aprendi após a perda de um filho jovem o quanto precisamos aprender a aprender a convivência com o Outro. Indo além de todos os narcisismos das pequenas diferenças. Indo além de todas as nossas inconscientes e noturnas ancestralidades brutais, vingativas, bárbaras e cruéis. Há um risco em nós de acreditarmos em nossos próprios fanatismos. E, bastando um pouco de ilusão como o cinema, reproduzimos e justificamos qualquer forma de ato violento ou destruidor. Não espero assistir os Tiros reais de Columbine e Realengo novamente, mas sei que posso ter esse dejá vu.

Cuidemos com afeto, suavidade e muito calor humano dos que sobreviveram. E deixemos de “explicar” a loucura do Outro, isso só nos justifica e aliena, além de banalizar todas as injustiças.

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Fonte: InfoAtivo Defnet