Fim de ano: época de compras, presentes, consumo

Por Rolando Martiñá, no EducaRede *
Tradução: Flextime Language Center
Para que possamos nos referir a esse assunto que nos chama de um modo não convencional (ou seja, não aderindo automaticamente ao anátema do “consumo”), seria interessante estabelecer dois princípios que surgem a partir de muitas pesquisas modernas na área das Ciências Sociais (1) e de expressões mitológicas e artísticas ancestrais (2)
Somos seres de intercâmbio (1)
Nascemos por meio dele; sobrevivemos e crescemos graças a muitos deles, podemos adoecer e até morrer se chegamos a carecer de algum intercâmbio significativo de modo permanente. Por diferentes razões e usando diversos meios, nós, seres humanos, intercambiamos bens materiais ou simbólicos entre nós ou com seres já falecidos que consideramos inevitavelmente ligados ao nosso destino.
Tudo indica que o presente, o donativo, o sacrifício e até mesmo o simples aperto de mão como gesto de cumprimento (signo de estar desarmado) responderam – em qualquer época e lugar – a uma profunda necessidade humana de sociabilizar, estabelecer vínculos, enviar mensagens, evitar a aniquilação, prevenir desgraças, provocar a fecundidade ou a riqueza etc. Ou seja, uma relação entre sujeitos, mediada por objetos.
Foi assim que – brincando com as palavras – poderíamos afirmar que esta profunda e permanente necessidade sempre respondeu à convicção de que a fome de contato deveria ser saciada de uma maneira ou de outra e que, se benefícios não fossem intercambiados, o mais provável seria que fossem intercambiados malefícios. Além disso, não sendo antropologicamente possível a autossuficiência individual, algum tipo de intercâmbio era praticamente inevitável: uma questão de sobrevivência.
Atualmente, uma das formas mais comuns de intercâmbio é o presente. Ao escrever esta palavra, não posso deixar de recordar-me da minha infância pobre e da emoção que senti durante alguns dias quando os Reis Magos me deram a tão desejada bola de futebol Nº 5… Sonhei muito com ela e continuava sonhando mesmo quando já era minha; dormia comigo na cama, eu a exibia para meus amigos como um tesouro e, além disso, ela me permitia – tenho que admitir – ascender na hierarquia “social e esportiva” entre eles…
Tempos depois cheguei a pensar que então, e desde sempre, o passado e o futuro fundiram-se no hoje; o presente (regalo) como atualidade, como um “trazer para a atualidade”, com um “levar em consideração” ao outro e sentir prazer por vê-lo desfrutar pelo que tinha desejado tanto. E por vê-lo iniciar uma nova etapa vital: quem não tinha bola e apenas a imaginava, passa, pelo presente, a ser quem a possui e a utiliza. Todo um processo, um ritual que contribuía para estruturar o tempo através de acontecimentos significativos da vida. Por isso presenteamos nos aniversários, casamentos, celebrações, formaturas.
Sem sombra de dúvidas, e com as pertinentes diferenças históricas, continua sendo uma prática que – feita de boa fé – trabalha para a convivência, para o bem-estar e o afeto. Também é importante distinguir, como tantas outras coisas, o valor e o preço. O fato de que muitas pessoas confundam valor e preço não significa que sejam a mesma coisa. Mas, justamente, o valor aumenta quando a doação – seja qual for o preço – reforça claramente a ideia de que o destinatário foi lembrado no momento da escolha. Somado a que uma parte nossa (dinheiro, tempo, energia, trabalho) é investido prazerosamente para dar alegria à outra pessoa.
Por exemplo, uma amiga da minha esposa voltou de uma viagem à Espanha com muitos presentes. Sabendo das habilidades culinárias da minha esposa, trouxe-lhe, em um delicado frasco, uma pequena, mas significativa quantidade de açafrão espanhol, “para o risotto”… Sendo que o mesmo nos levou a consumir com prazer o prato mencionado e a consumar uma celebração renovadora da nossa amizade.
Também poderíamos celebrá-la sem o presente, mas esse momento que se materializou graças ao presente, esse acontecimento, ficou definitivamente marcado nas nossas memórias com o nome da antiquíssima e dourada especiaria que deu sabor ao prato… E assim soubemos, sem sombra de dúvidas que, em algum momento da sua viagem, apesar de todas as suas distrações, estivemos no coração da nossa amiga de um modo especial.
Certa vez, uma paciente que não podia ver-me pessoalmente, telefonou para me contar que se sentia mal, pois estava angustiada, e pedir alguma orientação que a ajudasse. Fiz uma pausa silenciosa para pensar e disse-lhe: “Vá ao salão de beleza, compre uma roupa que gostaria de ter, tome um café com uma amiga e amanhã falamos novamente”. Ela, que ainda não me conhecia muito, primeiro pensou que era uma brincadeira, que não podia lhe dizer algo tão “superficial” etc.
Ao confirmar que o meu conselho era para ser levado a sério, e que “às vezes rimos porque temos vontade e às vezes a vontade vem porque começamos com o riso”, ela decidiu seguir a minha indicação. E as coisas não lhe saíram tão mal. Na verdade, lhe aconselhei o que muitas pessoas – especialmente as mulheres – têm o hábito de fazer espontânea e sabiamente, (mesmo que frequentemente, com alguma culpa): que fosse se autopresentear, uma das tantas formas que adota a gratificação através do intercâmbio. Porque ninguém tem o segredo da felicidade, nem na “superfície” nem “no fundo”, mas seguramente eu não teria sido mais feliz “sem” a minha bola e a paciente “sem” a sua imagem renovada no espelho. A alegria é um antidepressivo não químico muito eficiente.
O cantor F. Bono diz que ele tenta compor canções que ajudem às pessoas a saírem da cama pela manhã. Se assim for, que elas sejam bem-vindas, porque nem todos nós temos vontade de fazê-lo, nem tempo e dinheiro para passar boa parte das nossas vidas tentando entender, pressupondo quais são as “causas reais” do que nos acontece. No entanto “isso” continua acontecendo e muitas outras coisas mais…
Consumo e o consumismo (2)
É a mesma relação que há entre um brinde e o alcoolismo, ou entre um bombom de chocolate e um ataque de fígado: a medida. Outro cantor, desta vez compatriota, Alberto Cortez, cantou assim: “nem pouco nem muito, tudo é questão de medida”. Os antigos gregos já sabiam disso, que consideravam o excesso (hybris), a mãe da tragédia. Usavam a mesma palavra (farmacon) para referir-se ao remédio e ao veneno: uma diferença de dose.
Desde que a primeira mulher pendurou no pescoço um colar de dentes de javali até o “shopping” ultramoderno, sempre existiu o consumo. Diretamente ligado a outra das nossas fomes básicas: a fome de novidades. Não apenas de buscá-las, mas também de produzi-las. De provocar algo nos outros, de chamar a atenção. Isso não se trata de condutas patológicas, exceto que consideremos também patológica a atividade de milhões de pessoas que, além de consumir, ganharam a vida ao longo dos tempos, produzindo, distribuindo e vendendo todo tipo de objetos, materiais ou simbólicos, legais ou ilegais, necessários ou supérfluos, “superficiais” (como o vestuário) ou “profundos” (como as ideias).
As condutas que podemos considerar patológicas são as aditivas compulsivas de algumas pessoas, que se constituem como círculos viciosos (!) de difícil desativação, geralmente ligados à fantasia de que “sempre, quanto mais, melhor”, que acumular (seja o que for) é uma garantia de plenitude e de felicidade, e que desafiar todo limite é uma demonstração do autêntico poder. É obvio que talvez hoje seja mais fácil cair em tais excessos, em parte porque vivemos pela primeira vez na história – faz pouco tempo – em uma cultura que não é a que predominou durante milhares de anos: a da escassez. Hoje, somos muitos mais, interagimos como nunca antes e dispomos da maior oferta de bens da história. Para o bem e para o mal.
De qualquer modo e para deixar claro: não há objeto que compense a falta de amor. De nada me serviria ter a minha bola, se o meu pai não tivesse dedicado boa parte do seu escasso tempo me ensinando a jogar e jogando comigo. Não há dinheiro que cubra a ausência, não há “voo” que faça esquecer o “ninho”, nem “Disney World” que vacine para sempre uma criança contra o abandono ou o desamor. Desse modo, principalmente para estas Festas, MUITO AMOR. No entanto sem fanatismo, sem concluir que “já que os objetos não trazem a felicidade, a falta deles traz”. Os gregos – Aristóteles dixit – também já sabiam disso: a felicidade humana possível está no equilíbrio, nunca encontrado na sua totalidade, mas sempre, sempre buscado. E enquanto isso, nós vamos crescendo.
BOAS FESTAS!
* Rolando Martiñá, pai de dois filhos e avô de quatro netos, é Professor Normal Nacional, Licenciado em Psicologia clínica e educacional. Pós-graduado em Orientação Familiar, convênio Fundación Aigle-Instituto Ackerman de Nova York. Membro do Programa Nacional de Convivência Escolar, Ministerio de Educación de la Nación Argentina. Conselheiro familiar e de instituições educativas. Autor de “Escuela hoy: hacia una Cultura del Cuidado”, Geema, 1997; “Escuela y Familia: una alianza necesaria”, Troquel, 2003; “Cuidar y Educar”, Bonum, 2006 e “La comunicación con los padres”, Troquel, 2007. E-mail para contato: rmartina@fibertel.com.ar
Para ler mais:
(1)
• “Teoria das compras”, Daniel Miller
• “Tábula rasa”, Steven Pinker
• “A evolução do homem”, Robert Ardrey
(2)
• “Os gregos”, H.D.F Kitto
• “O homem e seus símbolos”, C.G.Jung
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Fonte: EducaRede
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