Convenção sobre o Direito das Pessoas com Deficiência exige mudanças nas políticas educacionais

Em 26 de agosto de 2009 foi incorporada ao direito brasileiro a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto n° 6.949/2009), assinada em 2007 na Assembléia Geral das Nações Unidas (ONU). Tão importantes quanto o significado global deste primeiro grande tratado internacional de direitos humanos do século XXI, são as obrigações jurídicas que sua ratificação impõe ao Estado e à sociedade brasileira. A Convenção foi aprovada com status de emenda constitucional (Constituição de 1988, art.5°, §3°). Isso tem dois significados fundamentais: a) os direitos, deveres e obrigações nela contidos têm aplicação imediata; b) tais direitos, deveres e obrigações são superiores às leis e a outras normas, que, no caso de serem contrárias à Convenção, são automaticamente revogadas ou devem ser interpretadas de forma a fazer valer o documento internacional.
Com isso, eleva-se o patamar de exigibilidade do direito à educação inclusiva e à não-discriminação em geral das pessoas com deficiência. Nesse sentido, a Convenção coloca parte do sistema educacional brasileiro em situação de inconstitucionalidade, impondo a todos, sociedade e Estado, que ajustem suas políticas e posturas. Caso contrário, a persistência de políticas de exclusão deve ser questionada no sistema de justiça nacional e internacional.
O Direito à Educação na Convenção
Com a incorporação da Convenção Internacional, o direito brasileiro passa a reconhecer a seguinte definição de discriminação por motivo de deficiência: “significa qualquer diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, com o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o desfrute ou o exercício, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais nos âmbitos político, econômico, social, cultural, civil ou qualquer outro. Abrange todas as formas de discriminação, inclusive a recusa de adaptação razoável” (art.2°, grifo nosso).
Especificamente em relação aos direitos educacionais, submeter as pessoas com deficiência unicamente ao atendimento educacional especializado ou segmentá-las, com fundamento em sua deficiência, em salas ou escolas especiais é, no termos da Convenção, atitude discriminatória, punível nos termos da legislação nacional.
O artigo 24, dedicado à educação, reforça o dever do Estado de assegurar “sistema educacional inclusivo em todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida”, traçando os seguintes objetivos político-pedagógicos: “a) O pleno desenvolvimento do potencial humano e do senso de dignidade e auto-estima, além do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos, pelas liberdades fundamentais e pela diversidade humana; b) O máximo desenvolvimento possível da personalidade e dos talentos e da criatividade das pessoas com deficiência, assim como de suas habilidades físicas e intelectuais; c) A participação efetiva das pessoas com deficiência em uma sociedade livre” (art. 24.1).
Em seguida, determina que as pessoas com deficiência não podem ser “excluídas do sistema educacional geral sob alegação de deficiência”, ressaltando que as crianças com deficiência igualmente não podem ser “excluídas do ensino primário gratuito e compulsório ou do ensino secundário, sob alegação de deficiência” (art.24.2.a), devendo o acesso a tais níveis ser assegurado “em igualdade de condições com as demais pessoas na comunidade em que vivem” (art.24.2.b). No mesmo sentido, é expressamente assegurado o “acesso ao ensino superior em geral, treinamento profissional de acordo com sua vocação, educação para adultos e formação continuada, sem discriminação e em igualdade de condições” (art.24.5).
Como direitos especiais das pessoas com deficiência, necessários à sua inclusão educacional em igualdade de condições, determina ao Estado que providencie “adaptações razoáveis” (modificações e os ajustes necessários e adequados, em imóveis já construídos, que não acarretem ônus desproporcional ou indevido, quando requeridos em cada caso), de acordo com as necessidades individuais; que tais pessoas “recebam o apoio necessário, no âmbito do sistema educacional geral, com vistas a facilitar sua efetiva educação”; e que “medidas de apoio individualizadas e efetivas sejam adotadas em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social, de acordo com a meta de inclusão plena”. (art.24.2).
Tais disposições consolidam na legislação brasileira o princípio da inclusão educacional, que determina que o atendimento educacional especializado, previsto na Constituição (art.208, III), visa o atendimento das necessidades educacionais especiais, sendo complementar à educação regular em instituições e classes comuns (nesse sentido, ver Resolução CNE/CEB n° 4/2009, publicada na seção Legislação e Jurisprudência).
Como medidas específicas a serem adotadas no campo do direito à educação inclusiva, a Convenção determina: a) Facilitação do aprendizado do braille, escrita alternativa, modos, meios e formatos de comunicação aumentativa e alternativa, e habilidades de orientação e mobilidade, além de facilitação do apoio e aconselhamento de pares; b) Facilitação do aprendizado da língua de sinais e promoção da identidade lingüística da comunidade surda; c) Garantia de que a educação de pessoas, em particular crianças cegas, surdocegas e surdas, seja ministrada nas línguas e nos modos e meios de comunicação mais adequados ao indivíduo e em ambientes que favoreçam ao máximo seu desenvolvimento acadêmico e social”; assegurando-se que serão formados e empregados educadores “habilitados para o ensino da língua de sinais e/ou do braille (…) atuantes em todos os níveis de ensino”.
Novos instrumentos de justiça e de monitoramento
Através da Convenção, os Estados signatários assumem o compromisso político de estruturar a máquina pública de forma a implementar os direitos e princípios nela previstos, inclusive através da criação de “um mecanismo de coordenação no âmbito do Governo, a fim de facilitar ações correlatas nos diferentes setores e níveis” (art.33.1). Além disso, comprometem-se os Estados com a criação “de um mecanismo independente, de maneira apropriada, para promover, proteger e monitorar a implementação da presente Convenção” (art.33.2).
Esse mecanismo interno de monitoramento, com a participação das pessoas com deficiência e de suas organizações representativas, deve assegurar a seus membros garantias jurídicas e estruturais, independência e capacidade de receber e encaminhar denúncias individuais e/ou coletivas de violação aos direitos previstos na Convenção – tudo com base nos Princípios Relativos ao Status e Funcionamento das Instituições Nacionais de Proteção e Promoção dos Direitos Humanos (Princípios de Paris, 1991). Essa estrutura nacional de monitoramento não substitui os demais órgãos do sistema de justiça, devendo atuar em articulação com estes.
Assim como já existe no âmbito de outros tratados de direitos humanos, a Convenção criou um mecanismo internacional de monitoramento de sua implementação – o Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (art.34). A este órgão deve o Estado submeter um relatório inicial abrangente “sobre as medidas adotadas em cumprimento de suas obrigações estabelecidas pela presente Convenção e sobre o progresso alcançado nesse aspecto”, no prazo de dois anos após sua vigência interna (art.35.1). Ou seja, até o dia 26 de agosto de 2011 o Brasil deverá apresentar seu primeiro relatório.
Após esse primeiro relatório abrangente, o Estado submeterá ao Comitê “relatórios subseqüentes” de acompanhamento, “ao menos a cada quatro anos”. Durante o processo de apresentação e discussão do relatório inicial e dos relatórios periódicos, o Comitê fará as recomendações que julgar pertinentes no sentido de adequar as políticas públicas aos princípios e direitos previstos na Convenção, comprometendo-se o Estado a apresentar informações sobre o progresso das medidas no relatório seguinte.
Nesse processo de monitoramento internacional junto ao Comitê (cuja primeira sessão aconteceu em fevereiro de 2009), é fundamental e estratégica a participação da sociedade civil, com destaque para três momentos: 1. Preparação e apresentação de um relatório alternativo aos membros do Comitê, no qual são destacadas as principais violações sistemáticas e desafios internos à implementação da Convenção; 2. Participação direta durante o período de sessões; 3. Seguimento interno da implementação das recomendações emitidas pelo Comitê.
Por fim, além desses mecanismos gerais de monitoramento, o Protocolo Facultativo aprovado e ratificado em conjunto com a Convenção abre a possibilidade de atuação direta de indivíduos e organizações da sociedade civil, através de petições individuais voltadas à defesa de pessoas ou grupos que sejam vítimas de violação aos direitos e garantias nela previstos. Uma vez admitida a petição, será aberto um procedimento interno, no qual serão requisitadas informações ao Estado. Antes de decidir definitivamente sobre o assunto objeto da decisão e de estabelecer quais medidas preventivas ou reparadoras deverão ser adotadas pelo Estado, o Comitê poderá transmitir “um pedido para que o Estado Parte tome as medidas de natureza cautelar que forem necessárias para evitar possíveis danos irreparáveis à vítima ou às vítimas da violação alegada” (Protocolo Facultativo, art.4.1).
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Fonte de informação: Ação Educativa
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