Que a discussão a respeito do direito a interrupção em situações de diagnóstico de deficiência venha a ocorrer justamente no Brasil, onde o assunto chega ao extremo de ser tratado como política negociável no âmbito político-eleitoral, é fato que deveria ser irônico, não fosse trágico.

Por Lucio Carvalho, da Inclusive

Agentes da Vigilancia Sanitária da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro fazem ação contra o mosquito Aedes aegypti, transmissor da dengue, Zika e Chikungunya, no  Sambódromo no centro da cidade nesta manhã de terça-feira (26).
Foto: Fábio Motta/Estadão

É muito pouco provável que qualquer pessoa na faixa entre 10 e 100 anos de idade tenha presenciado ou vivido momentos como o presente no que diz respeito ao temor generalizado pela condição de deficiência como o atualmente deflagrado em torno do vírus Zika e de sua mais grave intercorrência, a microcefalia, ainda que a relação esteja pendente de confirmação final. Além de motivar a atenção de organismos internacionais como a Organização Mundial de Saúde (OMS), a recente epidemia causada pelo Zika vírus tem provocado os governantes de países de todo o mundo a sugerir cautela principalmente para turistas em visita às regiões mais afetadas, especialmente o Brasil, país que tem mais casos reportados e diagnosticados até o presente momento.

A OMS inclusive acaba de declarar (01/02), por intermédio de sua diretora-geral, Margaret Chan, que a disseminação do Zika vírus e sua possível ligação com casos de microcefalia tornaram-se uma emergência de saúde pública internacional. É a terceira vez que a OMS faz um declaração desta monta. Antes, apenas a pólio, o vírus Ebola e o H1N1 haviam motivado o alerta global. No que isso afetará em curto e médio prazo o contexto brasileiro, entretanto, ainda é muito impreciso dizer. Antes disso, talvez fosse relevante para o debate público, além de debater-se a prevenção do incremento de casos, considerar a primazia do interesse e da dignidade da imagem da pessoa com deficiência, antes de deflagrar-se mais uma onda de temor a seguir da declaração, como vem ocorrendo episodicamente já, na imprensa, por parte de setores governamentais e obviamente entre as pessoas comuns também, principalmente nas redes sociais, onde debates e discussões acaloradas têm sempre lugar garantido.

As razões para o temor são realmente graves, sobretudo porque sua disseminação está relacionada a propagação do Aedes aegypti, mosquito vetor da doença que tem nos meses de verão seu pico de infestação, como informa periodicamente o Ministério da Saúde (MS), através dos LIRAs (Levantamento Rápido do Índice de Infestação) metropolitanos, mas também porque a microcefalia decorrente da infecção pelo vírus Zika não tem cura ou tratamento disponível e ainda é pouquíssimo conhecida pelos cientistas, embora grandes investimentos tenham sido realizados em todo o mundo no sentido de conhecer melhor o vírus e, em algum prazo incerto, até mesmo colaborar com terapêuticas.

Dada a perspectiva de uma cura ser praticamente inviável ou pelo menos encontrar-se em longíssimo horizonte, tal investimento tem sido largamente empregado na prevenção, através da busca pelo desenvolvimento de vacinas e da ampliação paulatina de conhecimento acerca da ação do vírus. Porém, enquanto a vacina não está disponível, outra realidade é a de que não existe, de fato, nenhuma prevenção disponível a não ser a detecção precoce durante a gestação e a consequente interrupção, ainda que realizada à margem da legalidade, isto porque em território brasileiro ela é facultada somente nos casos de anencefalia, situações em que não existe no feto a presença de massa encefálica compatível com o desenvolvimento da vida, resultando em gestações destinadas à morte do nascituro (relembre no site do STF a votação da matéria). É importante lembrar ainda que, no Brasil, o aborto é proibido pela lei, com exceção de quando a gestação envolve risco de morte da mãe ou é resultante de estupro.

Talvez um paralelo – ainda que bastante forçado – do pânico em torno da microcefalia possa ser encontrado somente entre aquelas populações que estiveram expostas à radiação atômica, como no Japão pós-guerra (1945) ou então em guerras nas quais se utilizaram amplamente armas químicas, como a guerra do Vietnã (1955-1975), por exemplo. Em casos como estes, a exposição a componentes químicos com severa ação biológica sempre suscitou temores, principalmente entre as mulheres, de que má-formações pudessem vir a ocorrer de modo acentuado, ou seja, diferentemente dos padrões normais, situações em que aconteceriam numa distribuição demográfica mais ou menos previsível. Ao contrário do que se poderia imaginar de imediato, a explosão presente de casos de microcefalia no Brasil não é o primeiro episódio do surgimento deste temor na história (apesar de que possa parecer numa busca aos meios de comunicação), que é tão antigo quanto a própria história da medicina moderna ou até mesmo aquém daí.

Pouco provável também, numa situação corriqueira, é a possibilidade de uma pessoa dimensionar antecipadamente a probabilidade de um filho vir a nascer com alguma deficiência. Algumas poucas situações atualmente podem ser detectadas precocemente através de exames pré-natais, embora as tecnologias de rastreamento sejam aperfeiçoadas dia a dia. Da mesma forma, compreender o significado e o impacto da deficiência envolve muitas situações incomparáveis, dado que o acesso à atenção precoce, de questões de saúde, de serviços e outras necessidades ocorram às pessoas de maneira tão desigual quanto a sociedade brasileira é desigual.

De outro modo, o temor por que a situação de deficiência possa vir a acontecer, este sim pode ser de algum modo dimensionado. Como é muito difícil ou impossível – ainda mais em uma época marcada por epidemias – sentir-se seguro ou imune de todo a uma condição que aparentemente não escolhe classe social ou status econômico para manifestar-se, como parece ser o caso da infecção pelo Zika (embora a distribuição de casos indique incidência distinta geograficamente e estreitamente relacionada às condições sanitárias), é compreensível que o risco seja ainda mais presente e considerado e o temor por isso mesmo aumente. Some-se o alerta generalizado que as autoridades e também os meios de comunicação têm preferido realizar, até mesmo porque os dados oficiais sobre incidência e contaminação não são absolutamente confiáveis, dadas as características sintomatológicas da infecção pelo Zika e dúvidas no meio científico e governamental inclusive a respeito dos critérios de enquadramento dos recém nascidos no diagnóstico.

O resultado explosivo da combinação do compreensível temor das autoridades sanitárias em alertar a população, dos meios de comunicação em muitas vezes repassar informações sem apuração detalhada e de declarações irresponsáveis das autoridades legais não é outro, como se vê, que o de disseminação do pânico. Prova disso é o levantamento divulgado no dia 31 de janeiro pela Folha de São Paulo, dando conta do aumento substancial da procura e realização do aborto em situações clandestinas, uma vez que, como já dito, a interrupção no Brasil é permitida apenas em casos de anencefalia. Isso sem falar na coleção de declarações no mínimo estranhas do titular da pasta da saúde, Marcelo Castro, que já chegou a manifestar-se recomendando que as mulheres contraiam o vírus Zika antes da idade fértil, num movimento espontâneo visando a imunização, além de afirmar publicamente que a guerra contra o Aedes é perdida, entre outras curiosidades sem maior efeito ou sentido.

Por outro lado, o que a reportagem da Folha revela está muito longe do que não se saiba. O aborto clandestino existe de fato há muito tempo no Brasil e, bem como demonstra a repórter especial sobre saúde do jornal, Claudia Colluci, vem sendo procurado sobretudo por pessoas de elevado nível econômico que o realizam sem maiores dificuldades, ainda que em situações nebulosas. Ao que tudo indica, o procedimento é relativamente tranquilo, envolvendo apenas a ingestão de um medicamento e está muito distante da realidade disponível a quem não pode arcar com seus custos, que parecem não ser poucos.

“Tranquilo”, evidentemente, se comparado às condições incrivelmente insalubres em que ocorre para aquela parcela da população que não pode pagar por técnicas como a medicamentosa e nem muito menos acontece dentro de alguma margem mínima de segurança. É muito importante reafirmar isto, porque o pensamento em vigor em boa parte do senso comum é o de que a decisão pelo aborto poderia ser popularizada e utilizada indistintamente a partir da abertura de brechas na lei. Trata-se de um argumento recorrente entre aqueles que defendem a manutenção da proibição em todos os casos e até mesmo a revogação dos casos em que atualmente é permitido pela justiça.

Incrivelmente, a situação do aborto no Brasil vem ocorrendo há décadas nesta mesma situação, à margem da lei, à margem de qualquer fiscalização acerca das condições de segurança procedimental e, principalmente, à margem de mínimas condições de dignidade, isso a despeito de qualquer juízo moral ou religioso que se possa realizar a respeito. Por essas ironias ou exatamente por causa disso, o assunto é dos mais amortecidos tanto no meio jurídico quanto nos meios de comunicação, sendo muitas vezes mais fácil encontrar análises da situação e uma abordagem desimpedida do tema no exterior, isto mesmo quando se trata da realidade brasileira.

Mas a reportagem veiculada pela Folha ainda desnuda uma outra situação que revela ainda mais a extensão do temor disseminado em relação à microcefalia, uma vez que diz respeito a casos não diagnosticados de infecção pelo vírus Zika. É isto mesmo, segundo a jornalista Claudia Colluci, a atitude seria um comportamento de antecipação à possibilidade do risco. Ora, se o nome dessa situação não é pânico, qual então seria? E o que essa realidade vertida em notícia pode informar a respeito tanto sobre o temor generalizado à deficiência? Sobre o acesso distinto aos serviços de saúde e direitos reprodutivos? E, sobretudo, a respeito da omissão do estado brasileiro em providenciar condições sanitárias que poderiam, se recursos fossem investidos, ter evitado a propagação dos casos e nascimentos?

Observando este cenário de intensas e conflituosas informações e expectativas, um grupo de pesquisadores, médicos, juristas e ativistas dos direitos das mulheres, vem estudando impetrar uma ação no STF possibilitando às mulheres realizarem no sistema público de saúde a interrupção nos casos de diagnóstico de microcefalia. O grupo, liderado, pela antropóloga Débora Diniz, que também esteve à frente da ação que culminou na jurisprudência sobre anencefalia, baseia-se em diversas premissas, de acordo com entrevista concedida à BBC, principalmente em uma que aponta a responsabilidade governamental em combater a causa da epidemia, ou seja, o próprio vetor Aedes aegypti e em impedir o surgimento de situações evitáveis pela ação pública e a consequente disseminação de casos de microcefalia. A ação ainda visa obrigar o estado a, por responsabilidade direta, oferecer condições de tratamento e inclusão social lato senso das crianças nascidas com a microcefalia.

Na entrevista, Débora ressalta que não se trata em nenhuma circunstância de obrigar quem quer que seja ao aborto, mas facultá-lo, uma vez que a causa da microcefalia seria de todo evitável, e a epidemia teria ocorrido por mera omissão ao cuidado com o vetor, não podendo comparar-se com intercorrências genéticas, por exemplo, que acontecem por razões totalmente fora do controle humano, ou outro tipo de acidentes, além de não poder-se atribuir ao descuido materno. O objetivo da ação, portanto, seria apenas o de igualar as condições de diagnóstico e resolução, escapando ao ciclo de temor generalizado, sem necessariamente buscar uma solução para todas as situações, mas fundamentalmente garantindo o acesso da mulheres ao controle de suas vidas e permitindo a expansão de seus direitos reprodutivos em um cenário complexo, no qual já se verificam o incremento na busca de soluções “alternativas”, mas nas condições em que historicamente o aborto vem acontecendo no Brasil e, diga-se de passagem, há muito tempo já.

Que a discussão a respeito do direito a interrupção em situações de diagnóstico de deficiência venha a ocorrer justamente no Brasil, onde o assunto chega ao extremo de ser tratado como política negociável no âmbito político-eleitoral, é fato que deveria ser irônico, não fosse trágico.

Em países europeus e outros que garantem o direito ao aborto dentre os direitos civis, a discussão sobre o direito nestes casos obedece a uma outra lógica, muito menos suscetível às pressões religiosas e políticas do que aqui, como foi possível acompanhar nas últimas eleições presidenciais. Trata-se de nações que partiram da condição de livre escolha para soluções individuais em nada conflitantes com a situação do aborto, então esculpido como opção individual e amplamente disponíveis no mercado de saúde, como até mesmo a detecção precoce e avançada de alterações cromossômicas e outras situações até mesmo em nível embrionário.

Ao mesmo tempo, é importante dizer que existem no campo da bioética e na medicina, no mundo todo, pesquisadores que postulam tanto a ideia de fomentar a investigação pré-natal com fins de garantir a máxima saúde da prole ou até mesmo de desencargo econômico, como o norte-americano Peter Singer e outros (ver aqui). Ainda que ideias assim possam significar interferências por vezes radicais na reprodução assistida e exageros perfeccionistas que poderiam estar flertando, sim, com a ideologia eugenista, mesmo que numa versão atualizada e culturalmente palatável, é uma tendência, ao que tudo indica, cada vez mais bem recebida e absorvida pela cultura destes tempos. De outro lado, estão os que defendem que a mensagem de busca pela perfeição humana escaparia à própria alçada humana, acabando por significar na desvalorização daqueles indivíduos que já nasceram ou ainda venham a nascer com alguma deficiência, como se pudessem tratar-se de meros erros de programação, o que o filósofo norte-americano Michael Sandel chamou em seu livro Contra a Perfeição: Ética na Era da Engenharia Genética, muito diretamente, de “nova eugenia”, ou “eugenia de livre mercado”.

São ideias conflitantes e extremamente matizadas e delicadas de uma tema polêmico tanto em países estrangeiros onde a legislação é mais flexível quanto no Brasil, que se dá principalmente a partir do momento crucial em que os casos de microcefalia justamente não param de crescer, mas aqui especificamente numa situação permeada de muitas distâncias sociais, econômicas e, principalmente, de informação.
Até o presente momento, a perspectiva dominante é a de que o governo adote práticas de prevenção que estão ao seu alcance mais imediato, ou seja, nada além de um esforço de pouca monta incapaz de deter o avanço da proliferação do mosquito, e por vezes mais contribuindo na disseminação do pânico do que em adotar medidas de equiparação e atenção imediatas. Todavia, a perspectiva de debater o tema convida especialistas, estudiosos e instituições relacionadas às deficiências de um modo geral a manifestarem-se, sob pena de que a comunidade de famílias e pessoas com microcefalia acabe falando sozinha, como acontece nos grupos de microcefalia nas redes sociais, enquanto que a sua imagem e de seus próprios filhos é amplamente divulgada junto a mensagens de pânico, quando talvez justamente deveriam ser as primeiras pessoas a buscar-se e amparar-se, num momento crítico como o presente, com o esforço de toda a sociedade, entre setores governamentais, filantrópicos, científicos e civis.

Alguém há de lembrar que, em vésperas de Carnaval, um tema sério assim devesse ou pudesse esperar uns dias mais. O direito ao lazer e à diversão são, como se sabe, historicamente priorizados por aqui; então é bastante possível que isso venha mesmo a acontecer. Talvez pelo estabelecimento desse tipo de prioridade pública, a população do país acabe por conformar-se a um estigma até mesmo pior que o de qualquer deficiência: o de que aqui não se pode estragar o carnaval, ainda mais na semana do Carnaval, em vésperas da grande festa nacional, etc. Mas pode-se destruir a vida das pessoas com a liberdade que, na prática e em situações onde ela realmente importa, pouquíssimos podem usufrui-la e para a qual a sociedade costuma ladrar ou gritar, festejar, enfim é Carnaval por aqui. Às vezes não parece que sempre é?